revista época
MATÉRIA DE CAPA DA REVISTA ÉPOCA....ATENÇÃO POIS CONTEM:
SPOILERS!!!!!!
SPOILERS!!!!!!
As chaves de Matrix
Sexo, kung fu e efeitos especiais ganham mais peso nas duas novas seqüências da espetacular saga de homens contra máquinas
LUÍS ANTÔNIO GIRON, de Hollywood
Bem avisou Morpheus, comandante da resistência humana contra as máquinas: Matrix está em toda parte. A superprodução dos irmãos Larry e Andy Wachowski, iniciada em 1997, transborda para outros suportes e promete subverter mais uma vez a idéia do cinema. Na tela, ganha duas seqüências, The Matrix Reloaded e The Matrix Revolutions. A primeira tem estréia nos Estados Unidos agendada para esta quinta-feira, 15, e, no Brasil, na sexta da próxima semana, dia 23. A segunda parte está em fase de pós-produção e será exibida somente em novembro. No início de junho, entrará em circulação o game Enter the Matrix, o primeiro realizado em íntima associação com um filme, com direito a seqüências inéditas e complemento da história principal. Ao mesmo tempo, vai ao ar The Animatrix, série de nove animes - como são conhecidos os desenhos animados japoneses de arte que tanto fascinam os Wachowskis - com enredos sobre a história anterior de Matrix. Alguns desses animes já passam no cinema e estão disponíveis para download no site oficial do filme (
www.thematrix.com). ÉPOCA assistiu ao filme e ao desenho, testou o jogo, conversou com o elenco e a equipe e revela os segredos da mais esperada estréia deste ano. É prudente apertar o cinto e, conforme sugere o novo slogan do filme, liberar a mente. A trilogia de Matrix vai abrir seu código.
Tudo começou no apagar dos reatores do século passado, em 1999, ano que balançava entre a eufórica bolha da internet e o pavor de que um 'bug do milênio' exterminasse os computadores. O universo do cinema de ação se viu sacudido por Matrix. Ao estrear, em 31 de março daquele ano, o filme surpreendia pela síntese de thriller, artes marciais e ficção científica numa renovadora cornucópia de efeitos especiais que desde então tem sido imitada. Também o drama do hacker Neo (Keanu Reeves), que descobre que seu mundo é uma ilusão e deve lutar para libertar a humanidade do jugo das máquinas, arrebanhou fiéis pelo planeta e rendeu à Warner a arrecadação recorde de US$ 460 milhões, contra um orçamento dez vezes menor. O filme ganhou quatro Oscars e se tornou o primeiro DVD a ter vendido 1 milhão de cópias. Apareceram ensaios e teses, sites e seitas em torno dos problemas levantados pelo filme. A bolha estourou, a internet murchou, o bug não chegou a existir e os atentados de 11 de setembro mudaram o mundo. Só Matrix mantém a euforia e a pose daqueles tempos, pois virou padrão de visualidade, produção, moda e forma de vida para se converter agora em trilogia. Os dois episódios novos foram filmados nos últimos 18 meses em Sydney, na Austrália, e numa velha base naval em Alameda, na Califórnia.
O efeito final só poderá ser conferido em novembro. Isso porque Reloaded e Revolutions formam um filme só cortado bruscamente ao meio. O único refresco é que, depois dos créditos de Reloaded, projeta-se o trailer de Revolutions. O primeiro retrata a preparação da guerra das máquinas contra Zion, a última comunidade humana. Pela primeira vez, o sítio aparece na trilogia. Neo ainda se rebela contra o destino e não se vê como O Escolhido para salvar a humanidade, profetizado pelo Oráculo. A batalha, com o triunfo do homem sobre a máquina, ocorre em Revolutions, sob a liderança de Neo, empossado como O Escolhido.
Matrix estabelece uma linguagem para o cinema e uma fronteira para a resistência do ator', vibra Keanu Reeves em entrevista concedida na penumbra do estúdio da Warner, nas vizinhanças de Hollywood. 'Meu personagem é ao mesmo tempo lutador e pensador. Para vivê-lo, tive de aprender artes marciais e metafísica.' Até o fim da semana passada, Reeves não tinha visto Reloaded. Com ar cansado e vestindo blazer e jeans, o ator argumenta que não precisa assistir ao filme porque se entregou ao papel e tem certeza do resultado. 'Sou a pessoa mais próxima dos irmãos', conta, em menção aos diretores. 'Eles me catequizaram para o papel.' Indicaram-lhe vários livros, entre eles Simulacros e Simulação, de Jean Baudrillard, e Fora de Controle, de Ken Kelly. 'São obras provocativas porque revelam a natureza ilusória da sensibilidade e da vontade.' Tais elementos o ajudaram a compor o personagem: 'Neo rejeita a idéia de destino, acredita controlar suas ações. É nas diversas fases das lutas que ele atinge a auto-revelação'. Os diretores obrigaram Reeves a treinar mente e corpo sem cessar. Para o ator, os irmãos pensam da mesma forma e diferem apenas na altura. 'Andy é menor', comenta, meio blasé. Mais descontraído, de agasalho, Laurence Fishburne conta que teve problemas com os Wachowskis. 'Eles parecem não levar os atores em conta. Durante as filmagens não cumprimentavam a gente, eram antipáticos.'
Equipe e elenco acham que a dupla de diretores gosta de fazer gênero. De acordo com o produtor Joel Silver, eles sempre pensaram em Matrix em três partes. 'Não nos avisaram antes porque temiam o fracasso da primeira parte', diz Silver, que virou uma espécie de ventríloquo dos irmãos porque eles não querem mais falar à imprensa. 'Por causa do sucesso inesperado, conseguimos avançar na aventura.' Silver julga que os irmãos não passam de 'garotos tímidos do Meio-Oeste que gostam do que fazem, mas não de explicar'. Nascidos em Chicago, Andy, de 35 anos, e Larry, de 37, começaram a carreira como roteiristas de quadrinhos. 'Eles não economizam na imaginação', explica o produtor, que calcula que os custos de produção de Reloaded e Revolutions atingiram a cifra de US$ 350 milhões, US$ 100 milhões só em efeitos especiais. Os números acompanham as façanhas da equipe de mais de 400 profissionais.
O produtor pensa que a tecnologia do primeiro filme vai parecer pedra lascada perto das novidades em cinematografia digital dos dois últimos episódios. Naquele, fez sucesso a seqüência Bullet Time (hora da bala), inspirada em anime, em que o computador mesclava stills (fotos de cena) e movimentos de câmera numa velocidade de 1.200 quadros por segundo. Os novos filmes potencializam o truque, triplicam a aceleração e utilizam maior quantidade de amostras de imagem reais inseridas no computador. 'Controlamos o set porque ele se realiza de fato dentro do computador', diz o supervisor de efeitos visuais John Gaeta, de 37 anos, ganhador de um Oscar pelo filme. 'O procedimento revoluciona a noção de cinema porque a câmera cede lugar ao mouse.' O mouse passeia por todo o espaço da filmagem desenhando percursos impossíveis caso fosse usada uma câmera. Mesmo os movimentos dos atores são gerados pela máquina, criando gestos impossíveis.
O mundo virtual da Matrix está, na verdade, sob controle de Gaeta. O auge do processo se dá na seqüência chamada de Burly Brawl (algo como 'grossa pancadaria', em inglês). Ali, Neo troca golpes de kung fu com 100 cópias do Agente Smith, num vórtice de vôos rasantes, pernadas quíntuplas e giros sucessivos de 360 graus. Para montar a cena, o coreógrafo taiwanês Yuen Wo Ping chamou 11 alunos seus. Coube a Gaeta inserir neles o rosto do ator australiano Hugo Weaving, que faz Smith. Outra cena feita para crescer o olho dos cineastas concorrentes é o da luta entre os Gêmeos e Morpheus em cima de um caminhão em alta velocidade numa auto-estrada. A produção construiu uma pista em looping para fazer a cena, embora a maior parte dela tenha sido filmada numa freeway em San Francisco. A cena levou 45 dias para ser concluída. Gaeta informa que o primeiro Matrix tinha 400 efeitos; Reloaded sozinho compreende mais de 1000. 'Cerca de 95% do filme contém movimentos digitalizados', diz.
Se a lente está caindo em desuso, a situação revela-se mais dramática para diretores e atores, pois podem ser substituídos por réplicas digitais. Não é a opinião de Jada Pinkett-Smith, a guerreira Niobe. Para ela, atores nunca vão desaparecer. Mulher do ator Will Smith, ela concorreu para viver Trinity no primeiro Matrix, mas não foi aprovada. Seu papel é secundário em Reloaded. No videogame Enter the Matrix, porém, ela se transforma em estrela. 'Sou eu no game, minha voz e parte de meu corpo, devidamente testados', sorri. 'Meus três filhos adoraram jogar. Virei a heroína deles!'
Grávida de seis meses, Carrie-Anne Moss não admite o ocaso do ator e é grata ao trabalho que realizou. 'Matrix me deu algo que eu não possuía: uma carreira.' Ela confessa que as cenas de luta foram extenuantes e se orgulha do golpe chamado de chute-do-escorpião, em que se tornou especialista. Em Reloaded, destaca as cenas eróticas. 'Creio no amor e a cena de sexo com Keanu ficou linda', diz. 'Ele é meu amigo e nos respeitamos.' Seu único senão foi o modo como os irmãos dirigiram. 'Eu e Keanu nus e eles gritando: 'Façam! Façam!' Era constrangedor, mas a delicadeza acabou predominando.'
Por tudo isso, não se iludam os matrixmaníacos de que tudo será coberto pela 'perfeição negra do universo', como define Gaeta. Há qualquer coisa de Star Wars nas seqüências que vêm por aí. Os realizadores trocaram reflexão por ação, povoaram o set de personagens caricatos e dotaram Neo de superpoderes capazes de rivalizar com os de Harry Potter e de Hulk somados. Como os tempos são diferentes, houve por bem enxertar discursos de guerra em nome da democracia zionesa. Há até um francês cínico, Merovíngio, marido frio da linda vamp Persephone (Monica Bellucci), que joga nos dois lados do conflito para obter vantagens de ambos. Sua mulher troca um beijo de Neo pela libertação do Chaveiro, o único a possuir as chaves para os recônditos verdes da Matrix. 'Persephone é corrupta, porém interessante', analisa a bem-humorada Monica. 'Ela quer sentir o amor pela primeira vez.' Reeves gostou das situações novas. 'Não sei dizer qual foi o beijo mais gostoso, se o de Monica ou o de Carrie', brinca. 'Eu teria de beijá-las novamente para me decidir.' Trinity apresenta golpes e ações mais ousadas. Arrisca a vida e, ao morrer, é ressuscitada por Neo. Como Super-Homem, desafia as leis da física.
Carrie-Anne confessa que tirou uma lição nesses seis anos em que está envolvida com Matrix. 'Aprendi que vivemos em um mundo de manipulação', diz. 'É preciso tomar cuidado com as notícias porque elas podem ser mentirosas. Matrix me ensinou a exercer o distanciamento crítico.' Reeves observa que o segundo episódio cita o Mito da Caverna de Platão. 'A pergunta do filósofo sobre o estatuto da realidade volta renovada pela dúvida sobre o que é humano.' No fim do segundo episódio, exemplifica Reeves, Neo se encontra com o Arquiteto, o homem maligno que projetou o software de Matrix. Ele diz que Matrix é sua obra de arte. Nela, até as transgressões são previstas pelo sistema. 'Você não passa de uma anomalia programada', dispara o novo vilão. 'Perca as esperanças, Neo. Esperança é o erro fatal da natureza humana e a razão de sua força. Mas tudo já está previsto'. Segundo Reeves, o Arquiteto introduz mais uma dúvida: será que aquilo que pensamos que é realmente real não passa de um sistema criado por outro sistema? O mundo fora de Matrix também não passa de uma simulação interativa para enganar os homens?
Sinal dos tempos, eis que Hollywood, a fábrica de sonhos, a Babilônia da trivialidade, está lidando com conceitos com certa desenvoltura. Matrix é responsável pelo upgrade filosófico. Os novos episódios da trilogia, no entanto, assimilaram as perplexidades contemporâneas a sua maneira. O fã precisa renunciar a qualquer ilusão de alta especulação metafísica. Matrix está mais acessível. Pulou do noir tecnológico para a arte popular. Não se trata da caverna de Platão nem da Paris de Baudrillard. Isto é Hollywood.