Terminei o livro.
Foi o meu primeiro Conan Doyle e, pelo bem da verdade, devo dizer que esperava mais, até por tudo que me chegou aqui e ali sobre Sherlock Holmes.
Porém, pesando prós e contras, foi uma leitura agradável, do tipo que prende por diversos momentos e te faz querer ir adiante para chegar o quanto antes ao desfecho.
Dá pra perceber a arrogância e orgulho britânicos na fala de Watson quando se refere à Índia como "nossas possessões";
Esse tipo de coisa sempre me lembra Edward Said e a colonização do subjetivo, que tem na literatura um forte veículo [ele faz um bela análise (Cultura e Imperialismo) de Grandes Esperanças (Dickens) e a presença inglesa na Austrália, negando um caráter neutro e a-histórico da literatura. Não que Dickens deliberasse o romance dessa forma, mas havia um relação de construção e reconstrução, onde os agentes moldavam o contexto e eram por eles moldados].
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Sobre o procedimento de investigação de Holmes, pensei no contexto histórico de cientificismo do século XIX. O método científico - embora não ortodoxo - se faz presente em vários campos, adentrando na criminologia, que, segundo o Google, é uma ciência do XVIII.
Como uma coisa puxa a outra, a Criminologia do XVIII era conhecida como
"Escola Clássica" e se pautava por Rosseau ao afirmar que o crime estava na sociedade e em seus valores. Lá pela segunda metade do XIX, que é o que nos interessa, veio a "
Escola Positivista", cujo maior expoente foi Cesare Lombroso e a sua teoria do "criminoso nato". Por ela, pretendia-se inibir o crime ainda em sua fase de pré-gestação, pelo conhecimento do potencial criminoso, determinado principalmente por sua morfologia:
" O criminoso nato seria caracterizado por uma cabeça com pronunciada assimetria craniana, fronte baixa e fugídia, orelhas em forma de asa, zigomas, lóbulos occipitais e arcadas superciliares salientes, maxilares proeminentes (prognatismo), face longa e larga, apesar do crânio pequeno, cabelos abundantes, mas barba escassa, rosto pálido.
O homem criminoso estaria assinalado por uma particular insensibilidade, não só física como psíquica, com profundo embotamento da receptividade dolorífica (analgesia) e do senso moral. Como anomalias fisiológicas, ainda, o mancinismo (uso preferente da mão esquerda) ou a ambidextria (uso indiferente das duas mãos), além da disvulnerabilidade, ou seja uma extraordinária resistência aos golpes e ferimentos graves ou mortais, de que os delinqüentes típicos pronta e facilmente se restabeleceriam. Seriam ainda comuns, entre eles, certos distúrbios dos sentidos e o mau funcionamento dos reflexos vasomotores, acarretando a ausência de enrubescimento da face. Conseqüência do enfraquecimento da sensibilidade dolorífica no criminoso por herança seria a sua inclinação à tatuagem, acerca da qual Lombroso realizou detidos estudos."
Fonte
Pode parecer um monte de bobagens e carregado com altas doses de preconceitos, mas as teorias de Lombroso encontraram eco nos homens do XIX e começo do XX.
Eu estudei Lombroso na graduação, na disciplina História da Ciência e da Técnica, mas foi de leve. Se não me engano, o pessoal de Direito tem maior contato e talvez possa contribuir com melhor embasamento.
Seguindo no rastro da Criminologia, no fim do XIX, nos deparamos com a
Escola Sociológica, destacando Enrico Ferri - discípulo de Lombroso. Além das características físicas - utilizadas em menor grau - sobressaíam-se outras condições:
"O delito, para Ferri, não é produto exclusivo de nenhuma patologia individual (o que contraria a tese antropológica de Lombroso), senão –como qualquer outro acontecimento natural ou social - resultado da contribuição de diversos fatores: individuais, físicos e sociais. Distinguiu, assim, fatores antropológicos ou individuais (constituição orgânica do indivíduo, sua constituição psíquica, características pessoais como raça, idade, sexo, estado civil etc.), fatores físicos ou telúricos ( clima, estações, temperatura etc.) e fatores sociais (densidade da população, opinião pública, família, moral, religião, educação, alcoolismo etc.) Entende, pois, que a criminalidade é um fenomeno social como outros, que se rege por sua própria dinâmica, de modo que o cientista poderia antecipar o número exato de delitos, e a classe deles, em uma determinada sociedade e em um momento concreto, se contasse com todos os fatores individuais, físicos e sociais antes citados e fosse capaz de quantificar a incidência de cada um deles."
Fonte
E Ferri, confirmando que tudo o que é novo guarda em si o anseio de romper com o antigo, desce a lenha nos clássicos:
"Falamos de duas linguagens diferentes. Para nós, o método experimental (indutivo) é a chave de todo conhecimento; para eles, tudo deriva de deduções lógicas e da opinião tradicional. Para eles, os fatos devem ceder seu lugar ao silogismo; para nós, os fatos mandam...; para eles, a ciência só necessita de papel, caneta e lápis, e o resto sai de um cérebro cheio de leituras de livros, mais ou menos abundantes e feitos da mesma matéria. Para nós, a ciência requer um gasto de muito tempo, examinando os fatos um a um, avaliando-os, reduzindo-os a um denominador comum e extraindo deles a ideia nuclear. Para eles, um silogismo ou uma anedota é suficiente para demolir milhares de fatos conseguidos durante anos de observação e análise; para nós, o contrário é a verdade".
Fonte
Não que Conan Doyle fosse um especialista em criminologia, sei lá. Mas era um homem de seu tempo e situou seu personagem na segunda metade do XIX, quando esses debates se acaloraram.
Na primeira leitura de
Um estudo em vermelho, não localizei nenhum indício do "criminoso nato", apesar das constantes análises físicas de Holmes. Mas quero me deter na colocação de Ferri, quando diz:
o método experimental (indutivo) é a chave de todo conhecimento; para eles, tudo deriva de deduções lógicas e da opinião tradicional. Para eles, os fatos devem ceder seu lugar ao silogismo; para nós, os fatos mandam." A Ciência de Sherlock, no segundo capítulo, foi batizada de dedução. Pela etimologia, cai para o silogismo. Porém, o indutivo opera-se
"examinando os fatos um a um, avaliando-os, reduzindo-os a um denominador comum e extraindo deles a ideia nuclear", numa tese sustentada pelo próprio Holmes. O que me leva a crer que seu método é o indutivo e o batismo foi errado. E que eu, também, independente do método utilizado para a investigação, acordei muito cedo e não tenho o que fazer no feriado.