A minha convicção de que as asas não existem (além de uma interpretação pessoal sobre o livro), está calcada nesta mensagem do mestre Enerdhil (para mim um dos maiores conhecedores de Tolkien que já vi), na Lista de Discussões Valinor (a mensagem é longa, mas vale a pena, por isso cito-a na íntegra):
Esse ourives aqui andou 'embolado' com alguns projetos e viagens, com limitado tempo e acesso a facilidades eletrônicas. Embora tenha 'passado os olhos' na discussão suscitada, mais uma vez, pelo ilustre Dragão de um só vôo, não pode dela participar (ufa!!). No entando, uma vez que solicitado a se manifestar (o que você não pede, Lasgalen, que eu não faço voando?!?), não há como fugir de expor alguns argumentos adicionais sobre a eterna discussão de nosso monstrinho fugitivo ter ou não apêndices voadores. O texto abaixo (tá bom, Las, é grande,
muito grande, mas dessa vez você terá que ler até o fim!) foi pensado durante intermináveis horas preso dentro de uma sala de embarque por conta de vôo atrasado e burilado no computador em uma tarde fria e chuvosa de julho (só faltou o Snoopy)...
O problema na questão de terem ou não asas os Balrogs se divide, na verdade, em três pontos principais:
O primeiro deles, e mais óbvio, é efetivamente a simples pergunta "Têm asas os Balrogs?" (ou, mais especificamente, "Tem asas o Balrog de Moria?"). Por incrível que pareça, esse é o ponto que, também, tem a resposta mais óbvia: Não, os Balrogs **NÃO** têm asas! E a explicação é, novamente, muito óbvia - os Balrogs não têm asas (como não tem também nenhum outro apêndice como rabo, chifres, língua de fogo, ...) porque não existem, são apenas frutos da imaginação. Não sendo um ente (ou objeto) real, não é possível que tenham posse de qualquer atributo ou característica.
Mas isso não resolve a segunda questão, que é "Por que tantas pessoas acham que os Balrogs têm asas, enquanto outras tantas acham que não?". Aqui, novamente, a resposta é meio óbvia (não tanto quanto à primeira questão): Pessoas acham que eles têm ou não asas porque isso é o resultado de sua imaginação. E esse é simplesmente o resultado da função básica de um livro (ou de uma história contada), estimular a interpretação ou imaginação das pessoas.
Esse interpretação é uma característica subjetiva, baseada no conjunto de experiências anteriores e no conjunto de estímulos recebidos pelo leitor (ou ouvidor) da história. Como tais conjuntos são diferentes para cada um, o resultado do processo é também diferente. O autor escreve um livro para que seja interpretado pelo leitor e isso é intrinsecamente diferente daquela de um filme ou peça de teatro, onde a caracterização de personagens, cenários e locações induz uma interpretação bem mais restrita (o ser humano normalmente tem a grande maiora de seu aprendizado associado à percepção visual).
Antes de passar à terceira questão, vale apena uma pequena digressão sobre aquela segunda. O que poderia induzir uma pessoa a imaginar que os Balrogs teriam ou não asas? Poder-se-ia especular que em média 50% achariam que eles as têm e outras 50% não. Tais pesos são modificados pela experiências do leitor. Por exemplo, aqueles que não tiveram conhecimento com o Silmarillion e apenas leram o SdA em uma tradução (e não é só a Martins Fontes que comete erros de tradução!) onde existe o termo "abriu suas asas...", em grande maioria imaginarão
aquele personagem com asas. Aqueles que tivessem porventura lido "The Fall of Gondolin" achariam a frase apenas uma licença poética. E aqueles que tivessem lido o original e ainda consultado o "Oxford English Dictionary" no verbete "Wings", provavelmente interpretariam no sentido de exercer poder (do Balrog) - asas, que asas?.
O parágrafo anterior é importantíssimo, pois justifica a franca admiração que nosso colega Ancalagon tem por Peter Jackson e sua filmagem do LTR. Como um dos mais ferenhos defensores das asas do Balrog, ele ficou encantado (embora disfarce bem) por PJ as ter colocado no personagem do filme. Não por causa do filme em si ou por causa da caracterização (Bleargh !)do monstro, mas sim porque esse pequeno detalhe do PJ aumentou em muito o número de pessoas que
imaginam o Balrog com asas. Toda aquela imensa maioria de pessoas que viu o filme e não leu o livro, ou mesmo aqueles que leram o livro depois de ver o filme, terão agora uma predisposição visual para imaginar o Balrog com as asas do PJ. Trocando em miúdos, o PJ fez mais pela OSBA com três ou quatro minutos de filme do que todos os defensores dela com suas mensagens em todas as páginas "Tolkien based" (só para lembrar, mesmo somando a impressão acumulada do LTR em todas as línguas durante os 50 anos e multiplicando por um número adequado de leitores - digamos uns 4 por livro - ainda é muito menos do que os espectadores do filme em apenas três anos). Para um verdadeiro OSBA, mais vale um 'tico' de um PJ que as muitas baboseiras do M. Martinez!
Aqui entramos na terceira pergunta relevante ao assunto, "O que Tolkien pensava a respeito das asas dos Balrogs?". Essa questão é de suma importância, pois se soubéssemos sua resposta não existiria mais discussão sobre o assunto. Entretanto, se Tolkien fosse vivo, ele não deveria fornecer essa resposta, pois ao autor não cabe explicar a interpretação de sua obra (vide Umberto Ecco), interpretação reservada aos leitores. Estando morto, a questão fica ainda mais complicada.
Há pouco tempo o seguinte argumento foi postado na lista de discussões Valinor (msg # 31129) "Mas para mim não há dúvida que Tolkien se referia a abrir asas mesmo, se de sombra ou não aqui não é relevante." Mas como não ter dúvidas? O autor (da mensagem) por acaso tem um texto escrito de Tolkien afirmando aquilo? Ou será que conhece o pensamento de Tolkien? - Mas que pretensão! Como é que alguém pode ter certeza do que Tolkien pensava quando escreveu aquele trecho, se ele já está morto há mais de 30 anos, quando o autor da mensagem nem tinha nascido ainda (ou então estava pelos cueiros)? Nem mesmo Deus (o católico) para saber o que os outros pensam (vai contra o livre
arbítrio da humanidade, de modo que os trechos das antigas escrituras onde Deus conhece o pensamento dos homens são reconhecidos como metáforas literárias dos escribas - inspirados ou não por Ele).
Voltando ao tema, qualquer um pode achar o que quiser do "seu" Balrog, porém não pode querer usar o seu "achismo" como argumento em uma discussão. Principalmente, não pode usar argumentos errados para tentar convencer outras pessoas de sua opinião. Indo para o lado jurídico, nós teríamos que ter ou uma prova, ou indícios suficientes, para afirmar qual era a intenção de Tolkien.
Prova mesmo, infelizmente não há. Apesar de Tolkien ser um dos autores em que o processo de composição de suas obras é melhor documentado pelas várias versões (publicadas nos HoMe e em alguns textos esparsos, como na Vinyar Tengwar), não se encontra uma frase que defina a existência daquelas asas. Até o momento, descontando pegadinhas de primeiro de abril, há 99% de incerteza sobre o assunto, os textos conhecidos não se referem a elas.
Isso desloca a discussão para a existência de indícios. Quer dizer, se existirem vários indícios, embora isoladamente não conclusivos, mas com qualidade para formar uma base coerente, podemos assumir qual é a opção mais provável.
Aqui é onde os participantes da OSBA pecam. Os argumentos apresentados nessa categoria são todos muito fracos (alguns até mesmo ridículos como alguma coisa sobre jogar galinhas, densidade do ar, tamanho dos salões,..), não se sustentam em qualquer discussão séria, não apaixonada. Um deles tem sido exaustivamente re-apresentado em várias versões (a questão do 'flying over Hithlum' que implica na existência de asas, mas o 'Flight of the Noldor' ou, no LTR, 'Flight to the Ford'
não implicam que os Noldor, ou Frodo, Sam, Aragorn, Merry, Pippim e Glofindel as tenham! Haja falta de coerência nesse raciocínio !).
Recentemente, uma outra mensagem na lista Valinor invocou nova aparição daquela expressão (msg # 31040): "Nesse trabalho da revisão, vcs corrigiram o apêndice onde diz que o balrog fugiu VOANDO para Moria?" [Nota: RR, 2nd. ed, Allen & Unwin, 1966, apêndice A, p. 353: ... a thing of terror that, flying from Thangorodrim, had lain hidden ...]. No entanto, o autor da mensagem não reclamou que, no capítulo 'The Field of Cormallen' [ibid, p. 227: ... their enemies were flying and the power...], a tradução [SdA, MF, 1991, p. 1006] usa "... os inimigos estavam fugindo..." Isto é, segundo a OSBA orcs, trolls e 'beast-enslaved' tinham todos asas, talvez até mesmo em alguns Haradrin ou Southron usados como cobaias para experimentos transgênicos ...
Por outro lado, vários indícios corroboram o uso, por Tolkien, do "spread one's wings" como expressão idiomática (com o sentido de desenvolver poderes ao máximo) e que constitui, com alguns outros fragmentos, evidência a favor de Balrogs sem asas (não se entra aqui em detalhes, os interessados podem ver o texto nos arquivos da Valinor, "A questão das Asas dos Balrogs...").
Para obter indícios indicativos sobre a linha de pensamento de Tolkien no seu processo de composição é necessário se colocar em sua posição. Muitos dos leitores que entram na discussão das asas (e em outras semelhantes) ignoram completamente quem era o o autor daquelas linhas. Tolkien não era, como um Paulo Coelho, simplesmente um escritor.
Para saber quem era Tolkien, pode-se referir a Seamus Heaney (prêmio Nobel de Literatura) no prefácio de sua tradução do Beowulf: 'However, when it comes to considering Beowulf as a work of literature, there is one publication that stands out. In 1936, the Oxford scholar and teacher J.R.R. Tolkien published an epoch-making paper entitled "Beowulf: The Monsters and the Critics" which took for granted the poem's integrity and distinction as a work of art and proceeded to show in what this integrity and distinction inhered.' {Entretanto, quando se considera Beowulf como uma obra literária, exite uma publicação que se destaca. Em 1936, o erudito e professor de Oxford J.R.R. Tolkien publicou um artigo que marcou época chamado "Beowulf: Os montros e os críticos" onde assumiu a integridade e distinção do poema como uma obra de arte e prosseguiu demonstrando no que essa integridade e distinção residia.}
A sentença acima, em primeiro lugar, define corretamente Tolkien - erudito e professor. Adicionalmente, demonstra como Tolkien trabalhava: como um pesquisador, erudito, sábio. Reconhecia o valor (até então esquecido) do poema como uma obra de arte e demonstrava porque. Esse trabalho mudou completamente a maneira como Beowulf passou a ser encarado na literatura inglesa.
Essas características é que são necessárias de serem compreendidas. Como age e escreve um 'Erudito'. Ele procura não só a beleza literária, mas também de onde vem essa beleza. Ele pesquisa o texto, as sentenças e palavras para que sejam usadas de acordo com seu sentido histórico, literário ou comum. Escolhe-as para refletirem não só o sentido desejado (mesmo que inconsciente) mas também para que se situem corretamente na boca da personagem ou do narrador. Ele não
mostra apenas a beleza, mas tem o conhecimento e a prova de porque ela é bela.
Vamos então nos situar na posição de Tolkien. Sabemos, porque está documentado, que ele escreveu o LTR após ter participado do OED (e após ter publicado um dicionário do Middle - English). Ele contribuiu para a seleção de aproximadamente 2 milhões de palavras e frases de um repertório disponível com 5 milhões! Por qualquer parâmetro, isso lhe dá um domínio linguístico (apenas no inglês) simplesmente inigualável em termos modernos.
Sabemos também que ele iniciou seus trabalhos no OED pela letra W. No 'Biography' (Carpenter, p. 108) cita-se, como exemplo a entrada para "wasp" e as múltiplas variantes através de muitas línguas usadas por Tolkien para a descrever sua origem. É razoável que ele tenha também escrito o verbete para "wing" (ou supervisionado, ao menos) ao longo dos anos que colaborou com o dicionário.
Sabemos, basta consultar o OED, que a expressão "spread one's wings" aparece indexada no verbete "wing" (escrito por Tolkien?) e não no referente a "spread" (escrito antes dele unir-se à equipe).
Esses três indícios sugerem que Tolkien sabia muito bem a diferença entre escrever "spread the wings out", "stretched the wings" ou "spread its wings".
Além disso, sabemos também como ele era cuidadoso ao escolher as palavras ou frases. A frase de Frodo em Sammath Naur é um exemplo disso (vide a lista Valinor ali pelas mensagens 30320 e respostas derivadas). Outros exemplos são mais notórios: o uso "pipeweed" no lugar de "tobacco" (pois 'tobacco' é uma palavra que não existe no inglês antigo, importada após a descoberta da América), o contraste entre a moderna 'potatoes' e a antiga 'taters' (tubérculos, raízes). Na edição inglesa de 1966 ele eliminou os 'tomatoes' da despensa de
Bilbo, trocando-os por 'pickles', já que os tomates também só surgiram na Inglaterra após metade do século XVI.
O capítulo do Conselho de Elrond é revelador em termos do domínio linguístico. Com mais de 20 personagens falando (eventualmente através da narrativa de outros), as sentenças no original refletem o 'status' (ou antiguidade) da pessoa que as utiliza. Quando Elrond fala, ele usa construções arcaicas, que refletem sua idade da primeira era: "This I will have as a weregild for my father, and my brother" (citando Isildur); 'weregild' é simplesmente arcaica no inglês, e a colocação do objeto na primeira posição This I will have... segue uma regra
antiga de que o verbo é a segunda posição na frase, devendo trocar posição com o sujeito quando algo diferente ocupa a primeira posição (regra essa praticamente esquecida no inglês moderno onde é raro o sujeito não preceder o verbo e o objeto não seguí-lo) [T.A. Shippley, Tolkien - Author of the Century].
Até mesmo a simples descrição da 'touca'de joias de Arwen foi mportada diretamente do inglês antigo (médio), usando sua tradução do Sir Gawain.
O conjunto acima já é suficientemente forte para mostrar que Tolkien escreveu (mesmo que de forma inconsciente) com segurança e domínio de causa a frase " and its wings were spread from wall to wall ". Tivesse ele querido se referir a asas reais, provavelmente teria escolhido outra construção.
Existem ainda indícios indiretos. O "Fall of Gondolin" (e outras histórias da saga dos elfos e homens na primeira era) eram conhecidos há muito tempo e bastante discutido nos Inklings, onde o LTR foi também exaustivamente lido e discutido. Escritores como CS Lewis e C Williams não deixariam passar uma inconsistência dessas entre Balrogs com e sem asas (Lewis revisou praticamente todos os textos escritos por Tolkien até o final da guerra).
A verdade, nua e crua, é que a maioria dos indícios apontam realmente para Balrogs tolkienianos (isto é, apenas imaginários) sem asas. Entretanto, como dito mais acima, isso é uma questão de imaginação, ou, parafraseando novante nosso Dragão de um só vôo, "questão de fé".
O que eu recomendaria, em termos de uma "questão de fé", é que ela ficasse restrita ao dogma, sem procurar estendê-la ou justificá-la com argumentos errados ou mal-versados. E, principalmente, não procurar empurrá-la goela abaixo dos pobres neófitos, ignorantes do assunto, que frequentemente postam nas listas a primeira das perguntas listadas lá no início. Afinal, os restos da carne queimada durante a Inquisição ainda assombram os porões da história recente da humanidade. E, disso temos também certeza documental, Torquemada tinha plena convicção de sua fé, tanto é que a impunha a ferro e fogo àqueles pobres coitados
que não tinham a sorte de compreendê-lo.
Enerdhil