01. Madame Bovary - Gustave Flaubert.
Começo 2024 me presenteando com a releitura — que considero a primeira leitura — de um livro esplendoroso. Quando li
Madame Bovary pela primeira vez, há muito tempo, foi numa edição sem notas, sem textos de apoio e antes de eu ter cursado Letras. (Não, meus amigos, eu não estudei Flaubert em
Teoria da Literatura, o que considero um problema curricular, mas eu amo Machado de Assis, o que significa que já pesquisei, por conta própria, muita coisa sobre o
Realismo, né?). À época, eu já adorei a Emma, e sempre a defendi, em inúmeras discussões. Claro que, com o passar dos anos, e do conhecimento (
Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa) que fui adquirindo, meus argumentos foram se tornando melhores. (Eu acho.
).
O que eu quis dizer quando falei, ali em cima, que esta segunda leitura parece a primeira, é que, como leitora, foi extremamente proveitosa. Pude notar inúmeras coisas que, na primeira leitura, não tinha como perceber. Para além disso, a introdução (feita por geoffrey Wall) da edição da Penguin (li no kindle) é um espetáculo. Quero destacar este trecho:
Os quatro homens que olham para Emma (Charles, Léon, Rodolphe e Justin) fixam a vista nas unhas, nos olhos, nos dentes, nas mãos, no cabelo e nos pés. Apenas nas extremidades de seu corpo, apenas nos pequenos detalhes. A visão que dela têm — e não se nos oferece nenhuma outra — é decididamente fetichista. Por exemplo, seus vestidos sempre são descritos com uma enfática precisão de connaisseur
. Sabemos qual é o tecido (merino, nanquim, caxemira) e o estilo (cinturado, com babados, fitas, franjas). A toalete feminina em geral — os mistérios das calcinhas, das anáguas, dos espartilhos, a graça das fitas de cabelo, dos coques e dos corpetes — tudo isso é o foco de um interesse perpetuamente excitado. Mas no centro desses adereços, onde devia estar o corpo, há uma espécie de vazio.
Achei essa interpretação muito perspicaz. Ela, de certo modo, confirma a ideia de que a Emma, que tomo aqui pelo corpo ausente, foi sendo paulatinamente morta pela máscara de Madame, que tinha de usar para ser socialmente aceita. Nem mesmo na morte, ela pôde se livrar de máscara de Madame, ser livre. Nem mesmo na morte, ela teve um corpo. Este lhe foi negado por uma sociedade fetichista, que subjuga a mulher. O marido quis enterrá-la com o vestido de casamento, os sapatos brancos e uma coroa. É curioso que o lençol que a cobrira, já morta, "se afundava desde os seios até os joelhos". O narrador diz, em certo momento, que parecia que um peso enorme a oprimia. E quando Charles vai ver a esposa, falecida, pela última vez, o narrador diz que ela sumia por baixo do vestido de cetim. O verbo no pretérito imperfeito — que foi uma inovação de Flaubert, e hoje nos parece tão comum! — para demonstrar que era algo que não acabou de imediato. Para demonstrar que, talvez, essa não fosse exatamente apenas uma tragédia de Emma, mas de ser mulher: a de sumir por baixo do título de senhora; a de ver seu corpo desaparecer por não ter direito a reclamá-lo quando se existe em função do outro.