Rebecca 3.0
Quando abri a porta fiquei em duvida se agradecia a mãe de Kleber por me deixar esperar por ele aqui e não lá fora, na chuva.
Não sei dizer se o quarto estava bagunçado ou se era daquelas arrumações que só quem faz entende. Ainda assim, não há como negar que era um lugar deprimente.
Empilhadas num canto várias caixas de pizzas, numa pilha alta o suficiente para formar um novo móvel, serviam de cinzeiro. Havia garrafas de uísque, alguns de boa marca, e duas garrafas de pinga, que foram talvez compradas quando o dinheiro ficou escasso.
Eu e Kleber tínhamos uma daquelas amizades de infância que ninguém sabe direito quando ou como começam. Éramos felizes, talvez por não saber como na verdade era a felicidade.
Não à toa existe um furacão chamado Rebecca e assim ela chegou em nossas vidas. Acabou com namoros quase centenários, corações foram partidos indiscriminadamente, iniciou alguns, ridicularizou outros e fez parte dos sonhos e pesadelos de todos.
Assim como Kleber, me apaixonei por Rebecca.
Mas quando, inesperadamente, começou a namorar Kleber se tornou proibida para mim.
Felizmente, e infelizmente para Kleber, Rebecca se mostrou uma boa amiga, mas não boa namorada. Minha paixão por Rebecca se diluiu em amizade enquanto Kleber pirava com infidelidades e desculpas furadas.
Rebecca, pouco antes de desaparecer, confidenciou-me que iria acabar o namoro. Seu repentino desaparecimento poupou Kleber da dor do abandono, mas não a da separação.
Quando Rebecca sumiu, Kleber se fechou neste seu mundo apertado e mofado. Deixou de ir à faculdade, atender telefonemas e da vida.
Ontem a mãe de Kleber me chamou para estender-lhe a mão e puxá-lo do fundo desse atoleiro de desesperança em que ele se afundou, por isso estou aqui.
Numa tela no meio do quarto ainda era possível, onde ainda não havia tinta, ver o grafite riscando a superfície. Já se reconhecia o rosto inacabado.
A duvida que pairava sobre a Mona Lisa, se ela sorria ou não, me ocorria agora, se o que o rosto de Rebecca na pintura emanava era mesmo tristeza. Os olhos semi-acabados fitavam o pintor, e agora a mim, como se fossem capazes de ver, formulando perguntas que não poderiam, é claro, ser ditas.
Pergunto-me se Rebecca gostaria de ter seu rosto à disposição de uma pessoa tão visivelmente perturbada.
A tela parcialmente pintada em tinta óleo dividia o quarto em dois ambientes: o quadro e o resto.
No resto havia alguns equipamentos estranhos, aparelhos de informática e muitas anotações que, numa olhada mais próxima, pareceu-me linguagem binária de computador que não entendi, apesar de, como Kleber, estudar Ciências computacionais.
Liguei o computador na escrivaninha (ou algo parecido), por algum tempo nada aconteceu. Apenas uma barrinha piscava no canto da tela.
Deixei aquilo de lado. Explorei mais o quadro e a mórbida semelhança daquele rosto com Rebecca. Virei quando ouvi um bip vindo do Pc, na tela uma mensagem:
“O QUE VOCÊ QUER AGORA, KLEBER?”
A pergunta na tela não dava pista de como devia ser respondida. Tentei qualquer coisa, mas nada funcionou.
Type version _ digitei, e o que a máquina respondeu me pretificou.
_“VOCÊ SABE MEU NOME, KLEBER. POR QUE UMA PERGUNTA TÃO BOBA?.”
Perplexo digitei outros comandos, até que uma pergunta inesperadamente apareceu na tela.
_“O QUE ESTÁ FAZENDO¿ VOCÊ NÃO É O KLEBER. QUEM É VOCÊ?.”
“Samuel”, digitei.
_“POR FAVOR, SAMUEL, LIGUE A CAMERA E O SOM.”
Obedeci. Uma voz familiar apesar de robótica, irrompeu e me fez tremer. Recuei alguns passos, tropeçando na tela semi-acabada.
_POR FAVOR, SAMUEL. AJUDE-ME ANTES QUE O KLEBER VOLTE!
A voz, metálica e tomada de desespero, de aflição, tomou o quarto. Olhei para baixo, vi que pisei na tela da pintura, deixando nela uma irreparável marca escura de terra.
_Quem é você¿ _ perguntei.
_SOU EU, SAMUEL, REBECCA.
_Rebecca¿ Mas ela ...você... Mas ela não...
_SIM, SOU EU. NÃO HÁ TEMPO PARA EXPLICAR, POR FAVOR, SAMUEL, VOCÊ PRECISA ACREDITAR!
_Onde você está?
_AQUI!!! BEM AQUI!!!
_Me fala onde que eu vou te buscar Rebecca!
_EU NÃO SEI!!!...EU TE VEJO PELA CAMERA, FALO E OUÇO PELOS EQUIPAMENTOS. NÃO SINTO NADA ALÉM DE VERTIGEM, DE FRIO. SAMUEL, ACHO QUE ESTOU NO COMPUTADOR, QUE EU SOU O COMPUTADOR!
_Mas como, Rebecca¿ Você deve estar numa sala aqui perto, com microfones, câmera... Me diz onde!
_É ISSO QUE ESTOU TENTANDO LHE EXPLICAR. ÚLTIMA VEZ QUE ME LEMBRO, QUE ME LEMBRO AINDA COMO EU ERA ANTES, O KLEBER ME FEZ ALGUMA COISA. ALGUMA COISA ERRADA!
_O que ele fez? O que houve ?
_ ME TIRE DAQUI. ME DESLIGUE, ME MATE, ME TIRE DAQUI!!!
Não entendi o que estava acontecendo, e nem poderia, mas sabia o que devia fazer. Tirei meu notebook da mochila e liguei os cabos. Dez minutos e a transferência de Rebecca estava completa. E com ela segura, finalmente, o comando final:
_FORMAT SOURCE? (Y/N).
_ SAMUEL, ANTES PEGUE AQUELE ENDEREÇO, MEU CORPO ESTÁ NUM HOSPITAL NAQUELE ENDEREÇO.
Apertei a tecla, a tela do computador de Kleber apagou.
Me despedi da mãe de Kleber rapidamente, me desculpando por não poder esperar mais e prometendo voltar em breve.
Saí correndo pela rua o mais suavemente que pude pois, em minha mochila estava o que restava da mente de Rebecca.
* * *
Rebecca sentiu a corrente elétrica percorrer os sistemas. A diferença de potêncial elétrico entre os vários componentes a tencionava cada vez mais para cima, trazendo sua consciência à tona. Como sempre, em cada inicialização, o processo de trazê-la da onde quer que ela estivesse a fazia sentir algo parecido com vertigem.
_OLÁ SAMUEL! QUE BOM QUE CONSEGUIU ME TIRAR DAQUELE INFERNO! _ disse antes mesmo que a imagem ficasse nítida em sua câmera.
_Não agradeceça_ disse Samuel_ pra falar a verdade foi pura sorte você voltar a funcio... digo, acordar depois da transferência.
_SAMUEL, VOCÊ ENCONTROU MEU CORPO?
Samuel respondeu com silêncio.
_SAMUEL, O QUE HOUVE? VAI PODER ME COLOCAR DE VOLTA NO MEU CORPO, NAO É?
_Rebecca... Você sabe que eu sempre gostei de você, não é? Bem mais do que o Kleber ou qualquer outro...
__SAMUEL... O QUE VOCÊ ESTÁ DIZENDO?...
_Foi uma sorte e até um milagre o Kleber ter conseguido preservar você intacta.
_SAMUEL!!! EU NÃO ESTOU INTACTA... ESTOU PRESA!!!
_ Eu não vou desperdiçar esta chance de ter você pra mim...
_SAMUEL... TUDO BEM... EU FICO COM VOCÊ... MAS EU PRECISO DO MEU CORPO, DEPOIS A GENTE...
_Eu tive que desligar as máquinas que mantinham seu corpo._Disse Samuel, expelindo a vergonha. _ Eu não podia correr o risco da ressonância entre o corpo e você te diluir e...
Um grito robótico, metálico, percorreu aquele prédio de apartamentos. Alguns vizinhos que o ouviram, acharam que Samuel estava apenas assistindo um filme.
* * *
Algum tempo depois, Rebecca conseguiu fugir. Ela escapou para a internet. Continua presa. Mas como numa casa com muitas janelas, nunca fica no escuro.
Palavras : 1080