Pronto? Já puxaram o saco suficiente do Cantona e seu Liminha (com todo o respeito, somos amigos de infância e esse era o apelido). A minha defesa começa com um levantamento dos antecedentes criminais do meu cliente, entre eles o de ser um escritor inestimável, um amigo inseparável e um marido fiel:
Adolfo Bioy Casares nasceu em Buenos Aires, mais precisamente na Rua Tucuman, no bairro de Palermo, no dia 15 de setembro de 1914. Descendente de avó inglesa, ele aprendeu as primeiras letras tanto no idioma espanhol, quanto no inglês, por imposição de sua ancestral. Casares pertencia a uma família abastada, a qual sempre o apoiou e possibilitou o desenvolvimento de sua carreira literária. Este suporte também lhe permitiu permanecer na Argentina mesmo nos momentos mais difíceis da história deste país, quando os escritores de sua época eram obrigados a buscar o exílio em outros países. Com todas as condições favoráveis, o autor pode se devotar a sua paixão, a literatura. Desde a infância Bioy teve acesso às obras mais importantes da literatura universal, graças a uma jornada anterior de seu genitor pelo universo da literatura.
Casares sempre teve a sua disposição um passaporte para o mundo, empreendendo assim diversas viagens à Europa. Sua expressão pessoal, tanto no plano da existência quanto no literário, se consolidou aos poucos com estes contatos externos. Seu primeiro livro, Prólogo, foi escrito quando ele tinha apenas 15 anos e sua publicação foi financiada pelo pai. Em 1932 ele conhece o escritor Jorge Luís Borges, com quem trava uma amizade profunda, que culmina em uma inestimável parceria literária. Os dois escreveram diversos livros juntos com seus nomes reais e pelos pseudônimos: C.I. Lynch, B. Suárez Lynch e H. Bustos Domecq - o mais conhecido de todos.
Os dois travavam diálogos incríveis nos anos de 1980 como: Bioy comenta sobre seus problemas de vista: “que coisa incômoda é não ver sem os óculos”. Borges, que estava cego há quase três décadas, replica: “que coisa incômoda é não ver com os óculos”. Outro caso era que eles apreciavam a desolação da ponte Alsina, na zona sul de Buenos Aires (que liga a capital com o município de Lanús). Eles se deleitavam com a fama de bairro de malandros e pessoas armadas de facões. Certa vez levaram um intelectual europeu lá que lhes perguntou: "E agora?" e os dois respondiam "E agora nada".
Bioy conhece sua futura mulher, Silvina Ocampo, em 1934. Neste ano ele toma uma importante decisão, deixa os cursos de Filosofia e Letras, convencido pelos argumentos de Borges e Silvina, e se dedica de uma vez por todas à literatura, lançando no mercado seus primeiros livros. Cresce o sucesso deste escritor, que se tornaria reconhecido internacionalmente com sua obra mais famosa,
A Invenção de Morel, publicada em 1940. De acordo com o próprio Borges, essa é uma obra perfeita.
Sei que Borges é um bom chamariz e até entendo que alguns podem atacar como sendo a minha única defesa. Na verdade, uso Borges porque o próprio não acreditava que Bioy Casares não era tão conhecido. Considerava toda a sua obra uma jóia rara na literatura mundial - diz um fã de Cervantes, Dante, entre outros.
Em 1954 ele lança O Sonho dos Heróis (
resenha), e neste mesmo período vem ao mundo sua filha Marta. Seu livro Diario da Guerra do Porco (
resenha) é editado em 1969 e adaptado para o cinema por Leopoldo Torre Nilson.
Bioy não era nem um visionário tampouco um autor de realismo fantástico, por vezes seus livros pareciam prever os tempos obscuros pelos quais a Argentina passaria e em outros ele usava o cinema (A Invenção de Morel) como uma máquina de vida eterna, mas sem vida. Difícil? Imaginem a imagem da tela de cinema andando bem a sua frente: ela se emociona, chora, ri e não envelhece, mas você não pode tocá-la, não pode interagir, você só pode olhar. Nesse ponto a brincadeira entre vida eterna, alma e deus se invertem para uma história melancólica e cheia de suspense. Em casos como O Diário da Guerra do Povo temos a história de jovens que odeiam velhos, mas na verdade odeiam a velhice e temem tornarem-se tão inútil quanto todos. Parece meio triste? Mas imagine que Bioy Casares nunca afirma a veracidade dentro dos fatos da sua história, todas elas permeiam em devaneios e sonhos, entre esperanças e desilusões, e no fim deixam o leitor sem saber se tudo aquilo fora verdade. Ex: Um idoso tornar-se o grande amor da mais bela jovem da cidade. A maneira como Bioy descreve a situação deixa tudo dúbio. Os enredos tem essa mistura de fantástico, abordando o amor, mantendo o suspense e sempre questionando qual o papel do ser humano, espiritual ou físico, na terra, na época em que é descrita a história (pode ser tanto no Carnaval dos anos de 1930, quanto em um tempo sem tempo numa ilha deserta).
Em 1991 Bioy confirma sua fama e seu reconhecimento ao receber, em Alcalá de Henares, um dos maiores prêmios de língua espanhola, o Miguel de Cervantes, o que confirma definitivamente o valor e o renome de sua obra. Ao longo de sua trajetória ele recebe vários outros prêmios, convites para cursos, palestras, conferências, entre outros.
No ano de 1993, em Dezembro, Bioy sofre um forte abalo emocional. Sua esposa parte neste mês e, como se não bastasse a dor que esta perda lhe provoca, alguns dias depois sua filha, Marta, única descendente, morre ao ser atropelada.
Bioy Casares morre em sua cidade natal, Buenos Aires, em 1999, com 84 anos de idade, vítima de vários problemas provocados por sua idade já avançada. Quanto à morte, o escritor sempre afirmou temê-la e nunca desejou partir.
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Borges e Bioy
Ver anexo 49608
Bioy Casares no programa Roda Viva
Ver anexo 49609
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Trechos de entrevista para o Roda Viva em 1995:
Sobre o fim da literatura
Luciana Villas-Boas: O senhor não sente a literatura ameaçada?
Bioy Casares: Creio que sempre esteve ameaçada. O livro sempre esteve ameaçado, mas o livro sobreviveu até agora e continuará vivendo. Veja que o livro é algo que nos obriga a algo incômodo: temos que deixar de falar com os amigos e nos afastamos para ler. No entanto, se faz isso com toda a naturalidade e espero que se continue fazendo.
Sobre a aversão à tecnologia (temas recorrentes de A Invenção de Morel e Memórias)
Jorge Schwartz: Bioy, retomando a última pergunta, parece que você é avesso à tecnologia, em Memórias [1994], você se declara contra o fax e contra o computador. Agora, surpreendentemente, seu romance magistral A invenção de Morel [1940] é um precursor da holografia, de técnicas revolucionárias que apareceriam muito mais tarde do que a realidade virtual, quando ninguém falava nisso, no fim dos anos 30. Então, como o senhor explica que uma imaginação tão extraordinária, tecnológica, que vai pela ficção científica, seja tão avessa à tecnologia?
Bioy Casares: Eu não tenho tanto medo da tecnologia. Meu agente literário me presenteou com um fax e eu o uso com freqüência. Mas creio que, se pusesse tecnologia em minha literatura, ela seria muito desagradável. Uma senhora americana me escreveu uma carta, falando muito de realidade virtual. Não entendo nada disso. Espero, com o tempo, entender, mas, até agora, escrevi meus livros sem entender nada disso.
Sobre o mundo imaginário
Augusto Massi: O senhor sempre se refere a uma cena iniciática, emblemática, da sua descoberta, vamos dizer assim, do mundo imaginário. É a cena que o senhor entra no quarto da sua mãe e encontra o espelho de 3 faces. Eu gostaria que o senhor falasse um pouco sobre essa cena, como ela ocorreu e o impacto que ela teve para a sua literatura.
Bioy Casares: Bem, é um espelho de 3 faces e, nesse espelho, se via a realidade do quarto e eu mesmo em uma perspectiva infinita, repetida milhares de vezes. Foi o primeiro fato fantástico que aconteceu em minha vida e que, seguramente, me incitou a escrever sobre as coisas que se parecessem com esse reflexo tão maravilhoso. Borges disse que tenho horror a espelhos. Nada mais falso que isso. Sempre me senti atraído por eles, gosto até daquele verde em volta deles. Parecem-me lindíssimos.
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Augusto Massi: Mas o Borges, por exemplo, dentro dessa eleição, ele enumerava alguns autores como Júlio Verne [nome aportuguesado de Jules Verne (1828-1905), escritor francês de ficção científica que antecipou, entre outros feitos, a viagem do homem à Lua e o submarino)], Wells [Herber George Wells (1866-1946), escritor britânico de ficção científica cuja obra inclui A máquina do tempo, A guerra dos mundos e O homem invisível] e chegava mesmo a Francis Bacon [(1561-1626), filósofo, político e ensaísta britânico. Entre seus livros figura a obra inconclusa A nova Atlântida, que narra a vida dos habitantes da ilha utópica de Bensalem, governada por sábios-cientistas da Casa de Salomão], como quem, vamos dizer, teria dado a origem ao gênero da ficção científica. O senhor, quando adolescente, menino, que livros o senhor leu que o marcaram e o levaram a essa opção? Ou foi uma opção madura, já da idade adulta?
Bioy Casares: Os livros que li, sobretudo a história de Pinocchio [As aventuras de Pinóquio, clássico infantil de Carli Collodi, pseudônimo do escritor italiano Carlo Lorenzine (1826-1890)], o boneco que falava e se comportava como um homem. Possivelmente, isso me encaminhou em direção às invenções fantásticas.
Sobre a amizade com Borges e sobre escrever a quatro mãos
Matinas Suzuki: Qual era o aspecto da personalidade do Borges que mais cativava o senhor?
Bioy Casares: A inteligência de Borges era irreprimível. Ele estava sempre inventando coisas e sempre estava me propondo histórias. Ele gostava de falar de literatura como eu gosto. E nos sentíamos muito amigos.
Luciana Villas-Boas: Eu queria fazer uma pergunta sobre um aspecto particular dessa amizade, dessa colaboração. Eu acho muito difícil escrever com alguém. E eu queria saber como é que dois imensos talentos da literatura faziam quando se dispunham a escrever juntos? O senhor tem uma obra importante com ele.
Bioy Casares: Acho que esse "temos de escrever com outra pessoa" ocorre porque não se tentou escrever com outra pessoa. Quando duas pessoas escrevem juntas e não são vaidosas, escrevem muito mais fácil do que separadas. Todos sabemos, ao escrever, que, às vezes, paramos porque não sabemos como resolver uma frase, como começar a frase seguinte. E quando há duas pessoas, uma delas sempre sabe. Borges dizia que o lamentável de escrever textos juntos é que quando se escreve sozinho é mais difícil. Justo o que acontecia comigo.
Sobre Jorge Amado e Eça de Queiroz
Matinas Suzuki: Quais são os autores brasileiros que o senhor gosta?
Bioy Casares: Bem, sempre volto a Jorge Amado [(1919-2001)], de quem gosto muito. É que, quando gosto muito de um escritor, e ele está vivo, em geral, sou amigo dele.
Matinas Suzuki: Da língua portuguesa nas suas Memórias, que é este livro, o senhor menciona o Eça de Queiroz. Algum outro autor, em língua portuguesa, lhe interessou?
Bioy Casares: Não sei. Me interessou muito Eça de Queiroz. Li e reli em Buenos Aires As cidades e as serras [romance publicado em 1901, após a morte do autor], e aquele outro... Como se chama? A ilustre casa de Ramires [1900]. Puseram com “z” [Ramirez], na minha tradução, mas é com “s”. Que mais posso dizer?
Sobre latino-americanos
Luciana Villas-Boas: E latino-americano, em geral, o senhor acompanhou a produção pós-mundo do realismo mágico?
Bioy Casares: Não, realmente, não. Mas gosto muito de [Gabriel] García Marquez, de Vargas Llosa [Mario Vargas Llosa (1936-), jornalista, ensaísta e político peruano, é um dos maiores escritores de língua espanhola, reconhecido em nível mundial, autor de Conversa na catedral. Ver entrevista com Llosa no Roda Viva] eu gosto muito, de Guillermo Cabrera Infante [(1929-2005), escritor cubano, autor de Três tigres tristes, livro que trata da cultura, da música e da vida noturna de Havana antes da revolução. Tido como um dos principais expoentes da literatura cubana, foi adido cultural de seu país em Bruxelas, mas em 1965 assumiu-se como crítico do regime e se exilou na Inglaterra. Em 1997, recebeu o Prêmio Cervantes] gosto muito.
Sobre o pai
Rinaldo Gama: Eu gostaria de saber a influência que o seu pai [Adolfo Bioy] teve na sua formação, já que ele também era um literato e chegou a ser o seu primeiro editor, corrigir o seu primeiro livro.
Bioy Casares: Sim. Meu pai quis escrever e não escreveu. Era amigo de escritores, era amigo de Alfonso Reyes [(1889-1959), escritor, filósofo e diplomata mexicano. Considerado por Jorge Luis Borges o maior escritor de língua espanhola de todos os tempos, influenciou a geração seguinte não somente no México, como também na América Latina], era amigo de muitos escritores importantes que tivemos na Argentina. E, quando escrevi o primeiro livro, meu pai o corrigiu. Alguém descobriu essas correções e me disse que um escritor não devia permitir que ninguém o corrigisse. Eu discordo totalmente. O escritor deve pôr, acima do interesse pessoal, o interesse pelo texto. Se uma correção alheia é boa, deve aceitá-la imediatamente. Meu pai me fez crer que Torrendel, um editor argentino, havia comprado um livro meu e que estava disposto a publicá-lo. Sem dúvida, meu pai o havia pago, mas eu levei toda a vida para descobrir isso.