Mercúcio
Usuário
Só comentando um pouco sobre o comentário do @-Jorge- quanto à culpa que cabe aos historiadores...
Eu tendo a concordar que haja, no Brasil, um fosso entre a produção historiográfica e o grande público. Mais do que isso, há um fosso entre a produção historiográfica e o próprio Ensino de História.
Mas eu pergunto se os historiadores têm a mesma capacidade de inserção no mercado editorial. Lembro aqui que o José Murilo de Carvalho escreveu uma bela biografia de D. Pedro II voltada ao grande público pela coleção Perfis Brasileiros da Companhia das Letras e figurou algum tempo entre os mais vendidos. Lembro também que a biografia de D. Pedro I escrita pela Isabel Lustosa para a mesma coleção não obteve o mesmo sucesso. Mas há que se considerar, também, que estamos tratando de um "nicho" no mercado que têm mais aceitação: as biografias.
Lembro ainda que MUITOS historiadores escreveram ótimos paradidáticos que são ótimos para o público leigo, mas cuja tiragem e trabalho de divulgação/distribuição são tão limitados que permanecem restritos como leituras de apoio nas graduações.
Saliento que, no Brasil, os historiadores não têm o mesmo lugar simbólico que têm, por exemplo, na França, onde se consome MUITA produção historiográfica (basta lembrar o sucesso editorial de uma obra densa como Montaillou, de um historiador do quilate de Le Roy Ladurie), onde os historiadores são efetivamente reconhecidos como detentores desse capital simbólico, estão à frente de programas televisivos e de revistas consumidas pelo grande público.
No Brasil, há dois pontos a considerar. O primeiro: concordo com o que diz o professor João Paulo Pimenta (USP) - por aqui há uma cultura histórica que toma a História do Brasil como algo de menor importância, desinteressante e subordinada à História da Europa - este último ponto é, aliás, visível mesmo em clássicos da nossa historiografia, como nas teses externalistas que viam na colônia um mero prolongamento de sistemas maiores (vide Caio Prado Junior), com toda a sua vida econômica e social dominada pelos ritmos do mercado europeu, negando a existência de um mercado interno ponderável e de qualquer possibilidade de acumulação endógena. Fernando Novais, por exemplo, toma a colônia como um apêndice da metrópole servindo à acumulação primitiva de capital.
O segundo ponto é... se essa cultura histórica toma a História do Brasil como algo desimportante, menor e desinteressante, o mercado editorial vê possibilidades de torná-la interessante. E assim se sacrifica os processos históricos para dar lugar ao anedótico, ao extravagante, à curiosologia. Como os historiadores sérios não estão dispostos a isso, normalmente alguns jornalistas o fazem e cria-se sucessos de vendagens como 1808, de Laurentino Gomes, que estampa na capa "Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil". Livro que cita grandes clássicos da historiografia brasileira entre as referências, mas que sacrifica cada uma de suas colaborações, retirando delas uma ou outra informação, numa narrativa marcadamente episódica, sem qualquer base teórico-metodológica mínima. Da mesma maneira os tais "Guias Politicamente Incorretos". Só folheei o da história do Brasil e o da América Latina em livrarias, que querem combater mitos afirmando outros mitos.
E isso não é exclusividade dos jornalistas. A historiadora Mary Del Priore escreveu uma biografia de D. Pedro Augusto ("O Príncipe Maldito") que é digna de um "facepalm".
De minha parte, acho que a historiografia é, em si, uma demolidora de mitos! Imparcialidade não existe, nem entre historiadores nem entre jornalistas... em nada. Todos escrevem de um lugar social que de alguma forma marca as suas interpretações. Tal, obviamente, não significa ausência de critérios e há que se considerar o peso da evidência. Da confrontação de teses opostas, no pensar dialeticamente, no reconhecer méritos e deficiências em tal e tal abordagem, na construção de uma síntese, na reflexão teórica e metodológica, os mitos caem por terra.
Acho que parte da responsabilidade cabe, sim, aos Historiadores brasileiros, que se acomodaram ao ambiente acadêmico. Precisam pensar formas de romper esse hiato entre a sua produção e a sociedade em que vivem e sobre a qual, muitas vezes, escrevem.
"Seria triste que tivéssemos de repetir a crítica que Marc Bloch formulava em nome dos historiadores de seu tempo: 'Não nos temos atrevido a ser, em praça pública, a voz que clama no deserto... Temos preferido encerrar-nos na quietude dos escritórios... À grande maioria não resta mais do que o direito de dizer que fomos bons operários. Mas fomos também bons cidadãos?'"
- Marc Bloch¹ citado por Josep Fontana² em "A História dos Homens"
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¹Historiador medievalista francês, um dos fundadores da Escola dos Annales. Engajou-se na Resistência Francesa e morreu fuzilado por soldados nazistas.
² Historiador catalão marxista.
Eu tendo a concordar que haja, no Brasil, um fosso entre a produção historiográfica e o grande público. Mais do que isso, há um fosso entre a produção historiográfica e o próprio Ensino de História.
Mas eu pergunto se os historiadores têm a mesma capacidade de inserção no mercado editorial. Lembro aqui que o José Murilo de Carvalho escreveu uma bela biografia de D. Pedro II voltada ao grande público pela coleção Perfis Brasileiros da Companhia das Letras e figurou algum tempo entre os mais vendidos. Lembro também que a biografia de D. Pedro I escrita pela Isabel Lustosa para a mesma coleção não obteve o mesmo sucesso. Mas há que se considerar, também, que estamos tratando de um "nicho" no mercado que têm mais aceitação: as biografias.
Lembro ainda que MUITOS historiadores escreveram ótimos paradidáticos que são ótimos para o público leigo, mas cuja tiragem e trabalho de divulgação/distribuição são tão limitados que permanecem restritos como leituras de apoio nas graduações.
Saliento que, no Brasil, os historiadores não têm o mesmo lugar simbólico que têm, por exemplo, na França, onde se consome MUITA produção historiográfica (basta lembrar o sucesso editorial de uma obra densa como Montaillou, de um historiador do quilate de Le Roy Ladurie), onde os historiadores são efetivamente reconhecidos como detentores desse capital simbólico, estão à frente de programas televisivos e de revistas consumidas pelo grande público.
No Brasil, há dois pontos a considerar. O primeiro: concordo com o que diz o professor João Paulo Pimenta (USP) - por aqui há uma cultura histórica que toma a História do Brasil como algo de menor importância, desinteressante e subordinada à História da Europa - este último ponto é, aliás, visível mesmo em clássicos da nossa historiografia, como nas teses externalistas que viam na colônia um mero prolongamento de sistemas maiores (vide Caio Prado Junior), com toda a sua vida econômica e social dominada pelos ritmos do mercado europeu, negando a existência de um mercado interno ponderável e de qualquer possibilidade de acumulação endógena. Fernando Novais, por exemplo, toma a colônia como um apêndice da metrópole servindo à acumulação primitiva de capital.
O segundo ponto é... se essa cultura histórica toma a História do Brasil como algo desimportante, menor e desinteressante, o mercado editorial vê possibilidades de torná-la interessante. E assim se sacrifica os processos históricos para dar lugar ao anedótico, ao extravagante, à curiosologia. Como os historiadores sérios não estão dispostos a isso, normalmente alguns jornalistas o fazem e cria-se sucessos de vendagens como 1808, de Laurentino Gomes, que estampa na capa "Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil". Livro que cita grandes clássicos da historiografia brasileira entre as referências, mas que sacrifica cada uma de suas colaborações, retirando delas uma ou outra informação, numa narrativa marcadamente episódica, sem qualquer base teórico-metodológica mínima. Da mesma maneira os tais "Guias Politicamente Incorretos". Só folheei o da história do Brasil e o da América Latina em livrarias, que querem combater mitos afirmando outros mitos.
E isso não é exclusividade dos jornalistas. A historiadora Mary Del Priore escreveu uma biografia de D. Pedro Augusto ("O Príncipe Maldito") que é digna de um "facepalm".
De minha parte, acho que a historiografia é, em si, uma demolidora de mitos! Imparcialidade não existe, nem entre historiadores nem entre jornalistas... em nada. Todos escrevem de um lugar social que de alguma forma marca as suas interpretações. Tal, obviamente, não significa ausência de critérios e há que se considerar o peso da evidência. Da confrontação de teses opostas, no pensar dialeticamente, no reconhecer méritos e deficiências em tal e tal abordagem, na construção de uma síntese, na reflexão teórica e metodológica, os mitos caem por terra.
Acho que parte da responsabilidade cabe, sim, aos Historiadores brasileiros, que se acomodaram ao ambiente acadêmico. Precisam pensar formas de romper esse hiato entre a sua produção e a sociedade em que vivem e sobre a qual, muitas vezes, escrevem.
"Seria triste que tivéssemos de repetir a crítica que Marc Bloch formulava em nome dos historiadores de seu tempo: 'Não nos temos atrevido a ser, em praça pública, a voz que clama no deserto... Temos preferido encerrar-nos na quietude dos escritórios... À grande maioria não resta mais do que o direito de dizer que fomos bons operários. Mas fomos também bons cidadãos?'"
- Marc Bloch¹ citado por Josep Fontana² em "A História dos Homens"
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¹Historiador medievalista francês, um dos fundadores da Escola dos Annales. Engajou-se na Resistência Francesa e morreu fuzilado por soldados nazistas.
² Historiador catalão marxista.
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