Pô, não pesei o verbo nisso, meramente mencionei uma tese que parece levar a uma consequência absurda - a de que todo vídeo na internet seria flagrante, se criminoso. O que eu pesei o verbo foi nos crimes de injúria e contra a segurança nacional, crimes que são só punidos seletivamente, quando ferem poderosos. Mas o Kim pincelou melhor a questão da prisão em seu todo, e você também, até porque são da área do direito.
Eu vejo uma assimetria considerável entre a mentalidade típica de lavajatistas e desse pessoal de esquerda. Estes últimos geralmente estão afinados ao garantismo, quer dizer, supostamente almejam salvaguardar a legalidade e a democracia. Quando elogiam a prisão do Daniel Silveira, o fazem no sentido de proteger as instituições. Aí é uma incoerência patente defender que isso seja feito com arbitrariedades. É difícil ver alguém dessa turma defendendo medidas contra bolsonaristas na base do "é ilegal mesmo, mas que se foda, tem que ser feito", ou, mais sutilmente, "fugiu da tecnicalidade, mas é um mal menor". Não duvido que existam gente que vá nessa linha.... por exemplo, marxistas bem estritos, que acham que o sistema legal é uma instituição burguesa e etc... Mas esse tipo de "sinceridade" não é predominante na mídia ou nas redes sociais.
Já quem é lavajatista não tem a legalidade como o último valor - e isso é uma característica comum do brasileiro médio, não-especializado em direito ou áreas afins... Minha análise do Moro na página anterior foi política e moral, não técnica e legal. Mensaleiros não são execrados apenas porque cometeram ilegalidade, mas porque cometeram grande imoralidade. Se eu tô puto com o STF, não é pela ilegalidade enquanto tal, mas pela (1) hipocresia ou falta deliberada com a verdade, (2) privilégios de poderosos. Pode ser que o Marco Aurélio, por exemplo, estivesse totalmente dentro da legalidade ao ameaçar o repórter sugerindo crime de injúria. O que me emputece é o poder demasiado do burocrata contra o cidadão comum. O caso do Daniel Silveira vai na mesma linha. Ainda que seja deputado, é, perto do ministro do STF, muito menos poderoso. Foi preso por peitar poderoso, do mesmo jeito que o repórter poderia tê-lo sido, ou do mesmo jeito que eu próprio poderia sê-lo, se tivesse uma grande audiência e falasse o que digo aqui. É uma questão do forte contra o fraco, até porque os próprios ministros do STF já até se xingaram e nada aconteceu, porque nesse caso todas partes são fortes.... E a coisa só piora tendo em vista que os ministros do STF exercem todo esse poder com o pretexto de salvaguardar a legalidade, mas eles próprios faltam com a estrita legalidade, como todos concordamos aqui. Quer dizer, privilegiados e hipócritas.
Já Moro, se cometeu ilegalidade, não se compara às ilegalidades e imoralidades dos poderosos que ajudou a botar na cadeia. A imagem que se criou da Lava-jato, perante o público, não foi de bastião da legalidade, mas sim de bastião da luta contra a corrupção. De novo, juízo político e moral, não técnico - nenhum operador do direito vai falar isso com todas as letras, é politicamente incorreto, mas essa é a realidade. Até porque o mundo vai muito além de aspectos legais. Um juiz parcial em processo contra um notório serial killer é muito diferente moralmente do juiz parcial que favorece corruptos em processos, embora tecnicamente os desvios sejam parecidos ou idênticos.
Nesse sentido, voltamos à questão do direito positivo vs. direito natural. Se fora do devido processo legal não pudéssemos julgar ações morais, pois seriam relativas, particulares "e portanto necessariamente injustas"... qual seria a diferença objetiva entre o estado nazista e o estado americano ou estado inglês da época, para além do fato de terem vencido ou perdido a guerra? O homem tem meios relativamente objetivos de fazer julgamentos morais, sim - caso contrário, não poderíamos falar que um estado, mesmo de direito, comete injustiça, ou comete o mal.... Pautar a justiça no próprio estado é quase uma idolatria, não condiz com toda bagagem cristã da mundo ocidental, como também com a tradição filosófica que vai desde Sócrates até pensadores do séc. XIX (incluindo o próprio Marx)...
[1][2] Por exemplo, no século passado, a homossexualidade era ilegal, e não deixamos de julgar que os homossexuais da época (como Alan Turing) sofreram injustiça... A escravidão também era legal... E por aí vai. "Esses estados não eram verdadeiramente democráticos". Pára né, independente de serem mais, menos ou não-democrticos, a situação é completamente análoga: são estados injustos amparados na legalidade. Não há motivo para achar que justamente o estado atual é privilegiado e fundamento da própria justiça, portanto quase sacrossanto, enquanto todos os outros estados eram limitados do ponto de vista X e Y e cometiam injustiça. Anacronismo - decerto, no futuro, o estado atual será considerado injusto em vários aspectos.
Alguém poderia relaxar a hipótese e falar que atuar
como se o estado de direito fosse a única fonte de justiça é a melhor estratégia do ponto de vista civilizacional. Sócrates, quando aceitou a pena de morte, o fez mais ou menos com esse espírito, mas mesmo ele acreditava que, meramente com a razão, poderíamos discernir o bem do mal, sem serem necessárias as vias estatais. Nem mesmo os deuses estariam livres dessa realidade, quer dizer, os deuses eram morais porque seguiam uma moralidade já existente, e não porque estabeleciam eles próprios a moralidade... E de fato, acho importantíssimo termos outros pilares para o conceito de justiça (como a religião e a razão) para contrabalancear o poder do estado.... Sem tais fontes, basta um pulo para falarmos que não há justiça contrária ao STF: ele seria a justiça encarnada, e não poderia, por definição, ser injusto. Os ministros parecem acreditar que é bem por aí mesmo... Seja como for, remeto ao post anterior sobre o Moro e afirmo que essa estratégia socrática não tem sido adotada historicamente no Brasil e não é adotada atualmente pelos poderosos, incluindo o STF. Julgo bastante contraditório quem condena duramente o Moro, mas não faz o mesmo com o grosso do STF, ou com figuras históricas que atuaram na contramão dessa estratégia, como Getúlio.
Ou, pra citar um exemplo citado menos frequentemente: o marechal Lott, que prendeu por iniciativa própria dois presidentes e induziu o Parlamento a impeachá-los a toque de caixa... mas é visto por basicamente todo mundo como um guardião da legalidade, na época. Inclusive a esquerda gosta de pintar a república de 46 como o início e bastião da democracia brasileira, para contrapô-la à ditadura militar... mas ela foi, essencialmente e desde o início, uma república das bananas controlada por militares, foi uma experiência democrática fragilíssima em um período essencialmente autoritário (anos 30 aos anos 80). Se o getulismo tivesse a unidade ideológica do salazarismo ou do franquismo, possivelmente todo esse período teria sido autoritário.... Quer dizer, a república de 46 só existiu como meio de campo fajuto numa luta entre autoritários....
Aliás, agora vejo, a tese positivista defendida aqui, que não há objetividade moral fora do direito estatal, tem no mínimo duas variantes.... (1) Não há moral fora da tradição jurídica, mas podemos, com a razão, julgar os fatos a partir dessa tradição, independente dos processos judiciais. Dessa forma, podemos refletir e julgar privadamente, para então concluir, por exemplo, que certos ministros do STF são terraplanistas jurídicos, ou que um assassino comete ilegalidade. (2) Não há julgamento fora do processo jurídico mesmo - se o Lula é criminoso, isso teria que ser provado na justiça, não temos meios intelectuais para aferir que ele seria condenado em um processo ideal, pois precisamos realizar historicamente o processo.... Entre positivistas de esquerda, parece haver uma mudança entre essas variantes ao sabor da conveniência - o Lula é inocente até se prove juridicamente o contrário (variante 2), mas o caso do Moro é diferente - podemos imediatamente, com a razão, constatar sua culpa enquanto juiz parcial (variante 1), não precisamos esperar o trânsito de processos e recursos contra o juiz.... Ora, com a mesma razão que nos permite sem demora concluir que Moro é culpado de parcialidade, podemos eventualmente concluir, com a mesma rapidez, que Lula não é inocente de diversas faltas graves - o próprio Ciro Gomes, professor de direito harvadiano, o faz.
[3][4] E essa mesma razão nos permite colocar pesos e medidas nas diversas faltas, um juiz que parcialmente prende um bandido não comete falta tão moralmente grave quanto o próprio bandido. Esse julgamento moral, aliás, decerto será feito em 2022, pelos eleitores, nas urnas.
Concluo com um poema....
Hoje é assim ou sempre foi?, tu me perguntas.
Não sei mas, por exemplo, nossas leis defuntas:
Já não me dão muita esperança na Justiça
(Com efeito, esse assunto até me dá preguiça).