Completando meu
Post Anterior eu tenho um texto muito legal, da epoca de lançamento do primeiro filme:
O cinema levanta questões que colocam em xeque os conceitos de realidade criados pela razão
Neo: Por que meus olhos doem?
Morpheus: Porque você nunca os usou antes.
(Diálogo do filme "Matrix")
No filme "Matrix", Keanu Reeves descobre que a realidade como a conhecemos é a criação de uma inteligência artificial. É como se vivessemos todos, sem saber, num mundo virtual. E se a "verdade" do filme não for tão fantasiosa assim? A superprodução dos desconhecidos Andy e Larru Wachowski, os irmãos diretores e roteiristas do filme, pode ser interpretada de várias formas - da discussão óbvia sobre a relação homem e tecnologia às metáforas míticas e cristãs, passando ainda pela crítica à sociedade das aparências e falsidades, das pessoas subjugadas pelo "sistema". Mas a questão mais perturbadora do filme é a que coloca em discussão o conceito de realidade.
O pensamento cartesiano (de René Descartes, o da famosa frase "Penso, logo existo") influenciou a cultura ocidental a partir do século XVII, com sua crença de que o mundo poderia ser descrito objetivamente, o que está na base da investigação científica. A razão está acima de qualquer suspeita. Será mesmo? O virtual engana os sentidos e parece tão real quanto o próprio real, que, afinal, revela-se não tão real assim. A simulação cria um perfeito simulacro de realidade, como um sonho tão vívido que, ao "acordarmos", não conseguimos distinguir entre ilusão e verdade.
O homem está preso aos limites da mente
A mente humana cria, por exemplo, a noção de tempo e espaço que, na realidade, não existem. A filosofia oriental já dizia isso, e Einstein comprovou com sua Teoria da Relatividade. A velha comparação entre cérebro e computador é tomada ao extremo por Jorge Braga para explicar o modo como olhamos e apreendemos o mundo. "Cada um de nós tem um Windows dentro de si. Olhamos para o mundo com um software já instalado. ‘Matrix’ é uma viagem em relação a isso". Jorge Braga refere-se à constatação de que, ao nascer, o indivíduo já traz em sua mente um conhecimento herdado de sua espécie, algo como um arcabouço psicológico, uma matriz psiquíca que condiciona a forma como percebemos a realidade.
O assunto foi tratado pela filosofia clássica (e moderna também) e pela psicologia. Os céticos consideravam que a única atitude sensata é a dúvida, na medida em que tudo que conhecemos é captado pelos sentidos e que, portanto, a mente humana se defronta com a incapacidade de conhecer objetivamente. Os idealistas afirmavam que só conhecemos as idéias que fazemos das coisas, isto é, apenas suas representações.
Matriz de equívocos
Platão resumiu em seu mito da caverna a "prisão mental" em que a humanidade vive: por não deixar a caverna, o homem não tem conhecimento do mundo luminoso que existe lá fora e considera as sombras do exterior como a única realidade existente. Ou seja, não temos acesso direto à realidade, pois só entramos em contato com ela através da mediação da linguagem, dos símbolos e dos conceitos, que são limitados.
Os orientais também já reconheciam a impossibilidade de o homem apreender a realidade como ela é, e toda sua filosofia está centrada no desenvolvimento de técnicas e rituais para capacitar a mente a ter uma consciência não conceitual da realidade. No Budismo, o nirvana é o estado mental de libertação total, em que se atinge o despertar, para além de todos os conceitos intelectuais.
Conceitos são criações da mente racional, chegada a distinções intelectuais, a noções de causa e efeito - enfim, são representações do real. A representação da realidade é mais fácil de se apreender do que a própria realidade. A questão é que tomamos os conceitos e os símbolos pela realidade. Os hindus simbolizam este conflito verdade x representação através das figuras de Maha (verdade) e Maya (representação).
Os zen-budistas desenvolveram os chamados Koans, paradoxos que através de afirmações e questionamentos aparentemente absurdos procuram demonstrar as limitações da lógica e do raciocínio. Como este, citado em "O tao da física", de Fritjof Capra: "Você pode procuzir o som de duas mãos batendo uma na outra. Mas qual é o som de uma das mãos"?
A tela recria os mitos modernos
"Vivemos de ilusão", afirma Jorge Braga. Na opinião do psicólogo, "Matrix" é revelador por abordar isto, embora para a maioria do público o que interessa no filme são os efeitos especiais e a ação vertiginosa. "Toda criação nas telas é um mito moderno, a leitura da consciência coletiva. A realidade da cultura é a que está no cinema, principalmente no cinema, que é popular e tem um incrível poder visual, criador de imagens fantásticas. O cinema está para a cultura assim como o sonho está para a pessoa. O sonho é a realidade".
Com Freud, os sonhos passaram a ser entendidos como uma autêntica expressão do homem e estudados como uma forma de compreender o que vai no interior humano, imagens e emoções que ditam nosso comportamento. Segundo Jorge Braga, o sonho é a realidade da pessoa. "Em qualquer imagem sonhada ou imaginada está a verdade". Não é a toa que em "Matrix" o personagem que oferece a Keanu Reeves a possibilidade de conhecer a verdade se chama Morpheus, figura da mitologia grega que é o guardião do sono e desta realidade transpessoal.
"Todos levamos uma vida dupla, quem lida com o virtual sabe disso", ressalta o psicólogo. Anderson, isto é, Neo, o personagem de Reeves em "Matrix", é alguém que leva uma vida dupla. Neo é o nome que Anderson assume em seus contatos virtuais. Simbolicamente, Neo é o Novo que se rebela contra o Velho. "Matrix", na opinião de Braga, é o primeiro filme em que a máquina supera o homem, e este usa a máquina para superá-la. O final, entretanto, deixa margem quanto a isso.
Assim como "Blade runner, o caçador de andróides", um clássico da ficção científica na década de 80, "Matrix" retrata o conflito criador e criatura, em que a criatura se volta contra o criador. "Matrix" também usa e abusa de estruturas míticas e religiosas: Neo é a transfiguração de Cristo, o salvador, com direito até a Maria Madalena e a Judas.
Ainda em "Matrix", a inteligência artificial assume o livre-arbítrio, em mais uma representação do grande temor que o homem enfrenta diante da possibilidade de o computador um dia alcançar a mente humana. "Nada acontece sem que não tenha sido imaginado antes", acredita Braga. No entanto, o psicólogo observa que o homem deusifica o computador quando, na verdade, está olhando num espelho narcísico. "O computador é o espelho do homem, a representação do nosso cérebro".