Ungoliant como um dos Ainur
Os Ainur- “Os Sagrados”- são os espíritos engendrados a partir do pensamento de Eru Ilúvatar, o Criador, Pai de Todos. São potências “angelicais” nascidas antes do surgimento do Universo. Desses Ainur, o mais poderoso, Melkor, se corrompeu insurgindo-se contra os desígnios de Ilúvatar, e espalhando a discórdia que criou todos os males que afligem o mundo em que vivemos.
Em sua queda, ele atraiu para o seu partido uma miríade de espíritos menores recrutados dentre as legiões de Maiar , os Ainur de categoria inferior à que o próprio Melkor pertencia, a ordem dos Valar, os “Poderes do Mundo”, regentes do Mundo Material, Eä , o nosso Universo.
Ao se manifestarem na Terra, os Ainur se valem de “fánar”, “véus”, formas moldadas pelo seu próprio pensamento, e que, consoante a sua vontade, podem imitar a aparência de Homens ou Elfos. É em função dessa capacidade de auto-encarnação que uma teoria muito difundida sobre a origem de Ungoliant passou a existir.
Ora, todos os textos referentes à Ungoliant são unânimes em afirmar que ela "tomou a forma de uma aranha”.Tal afirmação, é claro, sugere que essa não é a sua forma original, mas sim que a mesma foi adotada dentro de Arda por escolha da própria Ungoliant. Uma vez que os Mirroanwi , “os Encarnados”, Homens e Elfos, nascem com uma forma física definida ( o hröa) onde seus respectivos espíritos ( fëar) são alojados a conclusão é óbvia: em sua origem, Ungoliant era uma entidade puramente espiritual ( fairë) que, à semelhança dos Valar e Maiar, era capaz de adotar uma forma visível dentro de Arda.
Os textos que compõem o Silmarillion também sugerem que Ungoliant podia ser um espírito que nos primórdios de Eä foi cooptado por Melkor para a sua causa. Uma passagem muito relevante de um dos textos componentes do Silmarillion ( HOME 10- Morgoth`s Ring- The Later Silmarillion )parece corroborar essa versão pois nela Melkor se dirige a Ungoliant nos seguintes termos:
“APROXIMA-TE!!”- ELE DISSE. : “TRIPLAMENTE TOLA PRIMEIRO POR ME ABANDONARES, POR HABITARES AQUI, DEFINHANDO AO ALCANCE DE INDESCRITÍVEIS BANQUETES, E AGORA POR POR ME EVITARES, PORTADOR DE DÁDIVAS, TUA ÚNICA ESPERANÇA! APROXIMA-TE E VÊ! EU TROUXE PARA TI UM PENHOR DE UMA RECOMPENSA MAIOR A BUSCAR. Vamos considerar, para efeitos desse ensaio, que essa passagem seja mesmo uma indicação de que,outrora, Melkor havia sido o mestre de Ungoliant. Vamos ignorar que o mesmo texto contém uma passagem repetida com algumas variantes, em todas as versões da história, dando a entender que o trecho todo do encontro de Melkor e Ungoliant, no que tange a esse pormenor, pode resultar de especulações dos elfos, uma vez que nele se diz que:
“NÃO SE SABE DONDE ELA VEIO, MUITO EMBORA , ENTRE OS ELDAR SEJA DITO QUE EM ERAS ANTERIORES ELA HAVIA DESCIDO DAS TREVAS QUE JAZEM EM TORNO DE ARDA, QUANDO MELKOR OLHOU PELA PRIMEIRA VEZ COM DESPEITO PARA A LUZ NO REINO DE MANWË. MAS ELA HAVIA ABANDONADO SEU MESTRE, DESEJANDO SER SENHORA DE SUA PRÓPRIA COBIÇA, TOMANDO TODAS AS COISAS PARA ALIMENTAR O SEU VAZIO.”É um dos casos onde a narração feita pelos cronistas elfos pode diferir e não corresponder, exatamente, ao que o Tolkien, como escritor onisciente, pensaria. A passagem toda é , em última instância, uma “estória” élfica, uma criação dos cronistas com base em suposições e rumores ouvidos ao longo de séculos para suprir uma lacuna em seus registros, sobre fatos que não foram presenciados em primeira mão.
Feitas essas considerações, vamos esquecer as dúvidas e considerar como fatos os seguintes pressupostos:
• Ungoliant é uma entidade espiritual que se manifesta no mundo visível sob a forma de uma aranha
• A mesma Ungoliant foi ,outrora, uma serva de Melkor corrompida ou atraída por ele na aurora do tempo.
Esses dois fatos, por si sós, garantem que ela era um dos Ainur? Se ela era uma dos “Sagrados”, a qual ordem ela pertenceria? Aos Valar ou aos Maiar?
Bem, o Tolkien disse que, dos Ainur, aqueles que penetraram dentro do Universo, Eä, e que eram mais poderosos se tornaram Valar. O leitor e, durante um certo tempo, o próprio Tolkien, tiveram como um fato o conceito de que todos os Valar do Universo vieram para Arda e são conhecidos por aqueles que aqui habitam. Entretanto, o Tolkien quando avaliou mais detidamente seus conceitos cosmogônicos e a natureza do “Reino” de Arda (HOME 10 -Myths tranformed) chegou à conclusão de que:
“EXISTIAM OUTROS, INCONTÁVEIS PARA ALÉM DO NOSSO PENSAMENTO, EMBORA CONHECIDOS E NUMERADOS NA MENTE DE ILÚVATAR, CUJO LABOR JAZ EM OUTRO LUGAR E EM OUTRAS REGIÕES E HISTÓRIAS DO GRANDE CONTO, ENTRE ESTRELAS REMOTAS E MUNDOS ALÉM DO ALCANÇE DO MAIS LONGíNQUO PENSAMENTO. MAS DESSES OUTROS, NÓS NADA SABEMOS E PODEMOS SABER, AINDA QUE OS VALAR DE ARDA, TALVEZ, SE RECORDEM DE TODOS ELES” É de se presumir que essas outras cortes de Valar tivessem seus respectivos séquitos de Maiar como acontecia com os Valar “telúricos”ou “terrestres”.
Considerando que Ungoliant é proveniente da escuridão fora de Arda, é tentador supor que ela poderia ser um desses espíritos Ainur corrompidos , talvez, até mesmo, uma Valië “extraterrena” que houvesse atendido ao chamado de Melkor quando ele foi expulso da Terra durante a Primavera de Arda. Mas Tolkien disse que, muito embora haja uma hierarquia entre os Valar, por força da qual os Aratar sejam os mais reverenciados e Manwë seja considerado seu soberano, eles não são servos uns dos outros no sentido correspondente à vassalagem devida pelos Maiar a seus respectivos senhores Valar. Se Ungoliant era uma “serva” de Melkor é improvável que ela fosse uma dos Valar que teriam originalmente habitado outras regiões de Eä .Além disso, a idéia de que Ungoliant fosse um espírito Ainu esbarra em alguns entraves inarredáveis.
Em primeiro lugar, a natureza de seus poderes que consiste na habilidade de absorver Luz e gerar as Trevas que são, não a ausência de luz, mas a presença de uma coisa nova, dotada de ser próprio, não são condizentes com os atributos de qualquer dos Maiar e Valar. Mesmo Melkor, que era considerado Senhor das Trevas e que tinha espiritos de sombra como seus servidores não era capaz de criar a Antiluz de Ungoliant. Os Balrogs caminhavam embuçados em trevas, mas a escuridão que os encobria carecia das propriedades da Antiluz : sua tangibilidade ( as teias de Ungoliant aprisionaram Tulkas) e a capacidade de estrangular e subjugar a vontade de suas vítimas( um poder herdado por Laracna pois suas teias tinham essa mesma capacidade).
Ungoliant também possuía uma habilidade que lhe era peculiar: o Dom de absorver o poder armazenado em receptáculos e construtos místicos mesmo que eles NÃO FOSSEM previamente designados para esse fim ( transferir o poder para ela, como era o caso das carnes com as quais Morgoth deu de comer a Carcharoth) quer fossem eles produto do labor de espíritos Ainur, (as árvores de Valinor , os poços de Varda), quer fossem originados pelos Eldar ( as jóias de Valinor que os Noldor aprenderam a criar, onde parte do seu poder ficava alojado).
Isso é uma coisa que, até onde sabemos, nem sequer os Ainur são capazes de fazer( pelo que vimos dela, ela drenaria o poder de Sauron se devorasse o Anel, por exemplo). E muito menos, é claro, um Hröa formado pela matéria de Arda. O que reforça mesmo a tese de que ela era a única do seu tipo.
Agora, o principal indício de que Ungoliant não era um membro dos Ainur consiste no sequinte fato: Ungoliant, à semelhança de Melian, gerou uma prole com seres encarnados em Arda.Tolkien sugere que o caso de Melian foi uma concessão feita por Eru Ilúvatar, pois, no caso dela, o corpo com o qual ela concebeu Lúthien Tinúviel era um organismo real, um Hröa nutrido pela substância física de Arda e não um fána com o qual os Ainur se “vestem” no mundo visível.
Tal informação consta de uma nota ( a de nº 53) no texto SHIBOLLETH OF FËANOR no livro The Peoples of Middle Earth, HOME 12:
“LÚTHIEN FOI ATRAVÉS DE SUA MÃE, MELIAN, DESCENDENTE, TAMBÉM, DOS MAYAR ( MAIAR) O POVO DOS VALAR, CUJO SER COMEÇOU ANTES QUE O MUNDO FOSSE FEITO. MELIAN, ÚNICA DE TODOS AQUELES ESPÍRITOS, ASSUMIU UMA FORMA CORPÓREA, NÃO APENAS COMO UMA VESTIMENTA MAS COMO UMA HABITAÇÃO PERMANENTE EM FORMA E PODERES IDÊNTICA AOS CORPOS DOS ELFOS. ISSO ELA FEZ POR AMOR A ELWË; E TAL FOI PERMITIDO SEM DÚVIDA PORQUE ESSA UNIÃO JÁ TINHA SIDO PREVISTA NO COMEÇO DAS COISAS, E FOI TECIDA NO AMARTH* DO MUNDO, QUANDO ERU PRIMEIRO CONCEBEU O SER DE SUAS CRIANÇAS, ELFOS E HOMENS COMO É CONTADO( NA MANEIRA E DE ACORDO COM A COMPREENSÃO DE SUAS CRIANÇAS) NAQUELE MITO QUE É CHAMADO A MÚSICA DOS AINUR.” Isso só pode significar duas coisas: Que o caso de Melian não era tão singular assim e que outros "apetites" que não o amor podem fazer um Ainu suportar a provação de ser preso pelas cadeias da carne de Arda, e que ,no caso de Ungoliant, isso possa se dar com uma certa frequência e facilidade, mesmo sem que isso faça parte dos desígnios de Eru ( o que eu duvido), OU que a natureza de Ungoliant seja MESMO diferente da de outros espíritos, como os Ainur, em consonância com o que já foi dito e sugerido em outras partes dos livros do Tolkien. ( o que eu acho mais provável).
É óbvio que as características de Ungoliant não se coadunam com os aspectos nem dos fánar( manifestações dos Ainur no plano material) nem dos hröar ( corpos físicos). A forma adotada por Ungoliant parece ter uma natureza híbrida similar àquela com a qual Gandalf foi devolvido à vida por Eru Ilúvatar ( conforme consta da carta nº 158 ).Tolkien disse que aquela forma era um corpo material, como aquele no qual os Valar o enviaram para a Terra Média, mas esse novo corpo “trajava-se de branco e se tornou uma chama radiante mas ainda velada , salvo em momentos de grande necessidade” * ) e era imune a armas convencionais , a julgar pelo que Gandalf disse em seu encontro com Aragorn, Legolas e Gimli em Fangorn- O Cavaleiro Branco, livro III cap 5) (“ De fato meus amigos, nenhum de vocês possui qualquer arma capaz de me ferir”)
(*Contos Inacabados, ensaio sobre os Istari)
Assim sendo, eu acredito que o corpo de Ungoliant era uma forma intermediária entre hröa e fána, capaz de procriar com Encarnados mas ainda apta a manifestar os poderes do seu espírito. Essa forma não pode ser criada pela vontade de seres como os Ainur, no caso de Gandalf, ela proveio da vontade de Eru, e é um dos seus “Milagres” ( consistente na inserção dentro de Eä de elementos não prefigurados na canção dos Ainur). Além disso, a tendência de Tolkien, no caso do Silmarillion, seria dizer, explicitamente, que ela era uma maia, assim como ele fez no caso de Sauron, mas ele não agiu assim.
Em o Senhor dos Anéis, como a história é predominantemente marcada pelo ponto de vista dos hobbits, uma omissão como essa ou falta de afirmação é até lugar comum.
No Senhor dos Anéis não foi só o Tom Bombadil que não teve a sua natureza revelada pois o mesmo ocorreu com os Istari , com o próprio Sauron e com Goldberry( esposa de Bombadil). Os nomes maia ou maiar não são sequer mencionados, e, até mesmo nos Apêndices , Tolkien se referiu à Melian apenas como um membro do "povo dos Valar"
Mas o Silmarillion é um livro de escopo totalmente diverso. Nele, a intenção dos cronistas fictícios, cujos trabalhos Tolkien teria adaptado e compilado por intermédio do Bilbo* seria, justamente, a de traçar o perfil de toda a cosmogonia e de seus principais protagonistas, ainda que de maneira abreviada, e, naturalmente, limitada ao ponto de vista élfico. Muito provavelmente, se Tom Bombadil fosse um elemento tão importante para o desenrolar da trama central do Silmarillion, a sua natureza teria sido, pelo menos, sugerida, como ocorreu com os lobisomens, ents e Thuringwethil.
*( Cristopher Tolkien comenta na introdução do Livro dos Contos Perdidos que O Silmarillion, como chegou até nós, seria os dois volumes de "Traduções do Élfico" feitos por Bilbo em Rivendell)
Assim sendo, o silêncio de Tolkien sobre Bombadil no Senhor dos Anéis é perfeitamente compreensível pois o intento do livro é narrar uma guerra ao invés de discorrer sobre a natureza do Mundo e seus habitantes ( além de que a omissão resulta de uma intenção expressa da parte dele no sentido de deixar algumas vistas inatingíveis.) mas, no caso de Ungoliant, o fato de Tolkien evitar discorrer sobre a sua natureza parece resultar de um intento um pouco mais amplo.
No caso de Bombadil, as vistas inatingíveis que a sua origem oculta o são apenas para nós mas não para indivíduos tais como os Maiar e Valar. Gandalf, no final de O Senhor dos Anéis( portanto depois de ter se tornado o Cavaleiro Branco e ter recuperado pelo menos parte do seu conhecimento como Olórin, o mais sábio dos Maiar), dá a entender que sabe muito bem o tipo de ser que Bombadil era, a ponto de tecer comparações entre ambos ( Senhor dos Anéis , livro VIII cap 7, A caminho de casa).
Mas no tocante à Ungoliant ,no Lost Tales, Tolkien diz que nem os Valar sabem a sua origem, ao passo que, no Silmarillion, ele afirma que os Eldar (pupilos de Valar e Maiar) também desconhecem donde ela proveio. A vista inatingível à qual Ungoliant corresponde é muito mais do que um artifício para se produzir a famosa "impressão de profundidade" porque a tendência dos cronistas da Quenta Silmarillion é a de dar palpite até sobre assuntos dos quais são ignorantes. ( o que será objeto de outro ensaio) Portanto, o silêncio de Tolkien sobre um assunto desses no Silmarillion é mais significativo do que seria no Senhor dos Anéis e no Hobbit É uma sugestão de que o conhecimento dos Valar sobre a natureza dos seres não é completo, de que há mistérios sobre os quais os escritores élficos nem sequer estavam cientes.
A omissão do escritor é uma exceção ao princípio que rege a composição do livro. E o fato é que, segundo esse princípio, Tolkien teria dito que Ungoliant era uma maia se essa fosse a sua intenção.
Ungoliant como uma manifestação da discórdia entre os temas da Ainulindalë
“PROVENIENTES DAS DISCÓRDIAS DA MÚSICA-NÃO DIRETAMENTE DE NENHUM DOS TEMAS, SEJA O DE ERU OU O DE MELKOR, MAS DA DISSONÂNCIA ENTRE UM E OUTRO - COISAS MALÉFICAS SURGIRAM EM ARDA, AS QUAIS NÃO DESCENDEM DE NENHUM PLANO DIRETO OU VISÃO DE MELKOR: ELAS NÃO ERAM “SUAS CRIANÇAS”; E , PORTANTO, UMA VEZ QUE TODO MAL ODEIA, ODIAVAM-NO TAMBÉM. A PROGENITURA DAS COISAS FOI CORROMPIDA. Essa noção de que determinadas criaturas possam ter surgido da dissonância dos temas da Ainulindalë é bastante interessante e pode explicar alguns pontos obscuros da mitologia de Tolkien, mas, pessoalmente, eu não penso que essa idéia fornece uma explicação adequada para a existência de Ungoliant. Os motivos que me levam a pensar dessa maneira são basicamente dois:
• Os seres maléficos originados pela dissonância teriam passado a existir dentro de Arda ao passo que, em todos os textos que tratam de Ungoliant, consta sempre a afirmação de que ela é originária de fora de Arda e talvez de fora do próprio Universo (Eä)
• na carta nº 144 Tolkien disse que: “AS ARANHAS GIGANTES ERAM APENAS A DESCENDÊNCIA DE UNGOLIANT A PRIMORDIAL DEVORADORA DE LUZ, QUE EM FORMA DE ARANHA AUXILIOU O PODER NEGRO MAS QUE NO FIM CONTENDEU COM ELE. NÃO HÁ, ENTÃO, ALIANÇA ENTRE SHELOB ( LARACNA) E SAURON , O SUBSTITUTO DO PODER NEGRO , APENAS UM ÓDIO COMUM.” Ora o uso da palavra primordial( primeval) no trecho transcrito acima indica que Ungoliant seria um ser “primevo” que ela antecederia a própria criação de Eä. Logo, ela não poderia ser primeva e ao mesmo tempo ter sido gerada pela dissonância da Ainulindalë, que foi o que deu origem ao Universo. Há uma contradição lógica entre os conceitos
Descartadas essas duas hipóteses , a de que ela seria um dos Ainur e de que ela seria produto da Dissonância na Ainulindalë, resta uma terceira teoria a qual , a meu ver, fornece a melhor explicação para a origem e natureza de Ungoliant.
Ungoliant como encarnação da Noite Primordial
Essa "noite" primeva não pode ser aquela que existe fora dos círculos do mundo, fora de Arda, porque, sendo "primordial", existia antes do nosso universo, de Eä e ,consequentemente, antes da própria criação. Ungoliant ou Ungweliantë, como é chamada nos "Contos Perdidos", é uma forma avatar do Vazio, da ausência de luz divinizada que jaz fora de Eä ( fora dos Círculos do Mundo com maiúscula) e das habitações de Eru Ilúvatar, as Mansões eternas( The Timeless Halls). Como tal, aparentemente ela NÃO é uma criação de Ilúvatar mas uma manifestação de uma força independente
É bom destacar que foi enquanto vagava pelo Vazio que Melkor começou a ter idéias diferentes das dos demais Ainur . E, apesar de que parte desse vácuo original está agora preenchido por Eä, essa Noite primeva, esse vazio que jaz além das Portas da Noite, guardadas por Eärendil, ainda existe e é, segundo o Silmarillion, o lugar para onde Melkor foi banido no final da Primeira Era (na verdade Tolkien desmentiu essa noção mais tarde, justamente no MYTHS TRANFORMED do Morgoth`s Ring, HOME 10) ,.
Essa interpretação do duplo sentido da palavra "noite" na cosmologia do Silmarillion é um fato mencionado pelos especialistas. Robert Foster, autor do The Complete Guide to Middle Earth, recomendado pelo próprio Cristopher Tolkien no Unfinished Tales ( Os Contos Inacabados), comenta sobre a existência de DUAS "Portas da Noite" : A Porta da Noite entre Eä e o Vazio e a Porta da Noite entre Arda e Ilmen, o lugar onde estão as estrelas. Vê-se que, nesses casos, "noite" ora é identificada com o Vazio, ora com Ilmen, e que a Noite primordial, da qual Tolkien disse que Ungoliant é personificação não pode ser outra coisa que não o Vazio. Esse problema ocorrido com o termo Noite também aconteceu com outras expressões ( círculos do mundo por exemplo)e em todos esses casos, os motivos remontam a uma origem comum que vai ser tratada em outro ensaio.
Indícios da Permanência da Noção Original na Mitologia
A Carta nº 144 ,à qual já foi feita referência, parece combinar muito bem com a idéia do The Lost Tales, até mesmo no que corresponde à terminologia empregada. O glossário do Lost Tales diz que Ungoliant era uma “encarnação da Noite primordial”, enquanto que a Carta redigida décadas mais tarde , depois da publicação do Senhor dos Anéis, diz que ela era a “devoradora primordial da luz”.
No caso das demais alterações feitas por Tolkien em sua mitologia, as modificações implicaram em tranformações substanciais da caracterização dos personagens e da ambientação. Nienna, por exemplo, foi completamente modificada em relação à sua concepção primitiva que a tornava muito mais próxima da deusa nórdica dos mortos, a filha de Loki, Hela. Idéias como a dos filhos dos Valar foram abandonadas sem a menor sombra de dúvida, mas, no que diz respeito à Ungoliant, a realidade é outra.
A personagem reteve todas as suas características, e a origem de Ungoliant, como contada nos Contos Perdidos, não contraria detalhes do Silmarillion ,mas ,pelo contrário, elucida-os, apesar de, inevitavelmente, resultar em questionamentos sobre a estrutura da mitologia como um todo.
Aliás, os pormenores acrescentados pelas versões posteriores combinam muito bem com o conceito de personificação da Noite primordial. Em passagens do Silmarillion como essas reproduzidas abaixo, a relação de Ungoliant com o Vazio está implícita pois a dissolução aparente do próprio ser é um efeito colateral da Antiluz, e o Vazio é caracterizado pela ausência do Fogo Secreto que confere ser e vida independente às coisas. Essa vinculação com o Vazio exterior explica a sua fome insáciável por luz e o fato de que os poderes e a natureza de Ungoliant sempre remetem ao conceito de vácuo , de vazio, de ausência de ser.
MAS ELA HAVIA ABANDONADO SEU MESTRE, DESEJANDO SER SENHORA DE SUA PRÓPRIA COBIÇA, TOMANDO TODAS AS COISAS PARA ALIMENTAR O SEU VAZIO. UMA CAPA DE NEGRUME TECEU UNGOLIANT sobre si mesma: UMA ANTILUZ, NA QUAL AS COISAS PARECIAM DEIXAR DE SÊ-LO E QUE OS OLHOS NÃO PODIAM PENETRAR , POIS ERA VÁCUO. Curiosamente, enquanto as árvores são análogas aos atributos do Sol e da Lua, a Antiluz da "Gloomweaver" evoca as qualidades de um buraco negro do qual nem sequer a luz logra escapar. É interessante reparar que, no centro de um buraco negro, o tempo pára, enquanto o Vazio está fora dos limites do tempo.Tais habilidades me parecem combinar muito bem com uma criatura avatar do Vazio primordial.
Aliás, essa noção de que Ungoliant era um ser avatar, uma personificação de uma força atemporal e primeva, parece ecoar no nome escolhido por Tolkien para batizar a região de Aman na qual ela se ocultava quando Melkor veio à sua procura: Avathar.
Eu penso que, à semelhança de muitos outros nomes de mitologias “reais” que foram adaptados para as línguas élficas, ( Atalantë, Avalonnë, Eä, etc) retendo, não obstante, uma vinculação marginal com suas raízes, o termo Avatar foi escolhido por Tolkien pela sua conexão com a idéia de personificação.
A palavra Avatar vem do sânscrito e significa literalmente “Aquele que desce”. É um termo aplicado às múltiplas manifestações de Vishnu, o preservador da mitologia hindu, no plano terrestre que enverga um corpo humano para restaurar a ordem das coisas. Rama e Krishna são tidos como avatares e os avatares são exatamente o que Ungoliant parece ser: a personificação de uma entidade cósmica.
Já no Tolkien, a explicação para a etimologia de Avathar é a seguinte: a palavra resulta da composição de três radicais élficos: awa, que significa “exterior”, elemento presente em Ava Kúma ( o nome da Noite Primordial, significando literalmente “Vazio exterior”) e Avalonnë; wath , que significa “sombra” e thar que quer dizer “através” ou que, segundo alguns, no caso, seria uma expressão representando a forma plural.
É, no mínimo, muita coincidência que Ungoliant, que, nos Lost Tales, seria a encarnação do Vazio ou Noite exterior, no Silmarillion, habite uma região cujo nome significa precisamente ou “sombra estendida sobre o exterior” ou “sombras exteriores”. ( do lado de fora da Muralha da Pelóri que confinava a Luz das Árvores) e que tem uma contraparte em sânscrito, certamente de conhecimento do Tolkien, que designa a encarnação de um ser divino.