Meu diário literário de hoje é para contar como a simples posse de um livro me deu dois "amigos" em uma semana só. Como estou sozinha em casa hoje e não tenho com quem conversar, provavelmente vou escrever capítulos sobre o eventos que duraram 3 minutos. Ficar lendo Virgina Woolf dá nisso.
Amigo #1
Pois é, a vida me fez parar em uma agência de tradução em Cambridge. Tendo gente de tudo quando é lugar do mundo, a estante de livros é bastante diversa: tem livro em grego, holandês, norueguês... A biblioteca é colaborativa e livre, você dá e toma o que quiser - acho o máximo. Só que a maioria é daqueles livros meio duvidosos, uns policiais e romances baratos que se compra em aeroporto por meio pence. Mas não posso criticar muito porque a trilogia SdA que eu li provinha de lá.
Bom, de estantes de livros eu não desisto nunca, e um dia desses fui buscar café na cozinha largando os olhos nas prateleiras e...
Blindness! Fiquei empolgadíssima: algum gringo das redondezas leu um escritor de língua portuguesa? Que orgulho! A capa era sensacionalista, óbvio. Dizia logo "Internacional best-seller" e vinha com um selo prateado alardeando o Nobel do Saramago. Particularmente, tenho muita vergonha até de encontrar livros que tenham as palavras "best-seller" ou "major movie" na capa - não pego, não leio, não dá. Só que ver meu Saramago ali, à exposição de olhos do mundo, remexendo meu orgulho cultural, me deixou completamente desarmada. Peguei no livro e levei para a cozinha, curiosíssima para ver como é que traduziram o gajo. Na cozinha, duas polacas e uma tcheca conversavam em algum idioma incompreensível, enquanto uma suíça tirava café e me via chegar, embasbacada, com um livro branco na mão. (A suíça era a dona da empresa.)
Eu não consegui me conter. Virei para as três conversadeiras exclamando: "Meninas, vocês estão vendo esse livro? É excelente! Nem acredito que o encontrei na estante! É o meu livro preferido! Quer dizer, não é, mas é quase, é português!" Assim mesmo, toda desmesurada e intrusiva. A suíça me olhou sorridente, se aproximando aos poucos, observando a reação das três meninas enquanto eu me derramava pelo Saramago. Vendo que só uma me deu bola, ela se sentiu à vontade de entrar na conversa: "Ah, você gosta do Saramago? Eu li esse livro. Aliás, li outros dele também, mas achei a leitura é muito difícil". Meu mundo caiu. Espera, a dona de empresa mais cool e gente boa que eu já vi na vida (juro, ela chega a hospedar funcionários recém-chegados na casa dela. Eu mesma fiquei lá quando cheguei de mudança, sem fazer ideia de quem era essa tal I.W., a destinatária das cartas que estava em viagem, mas essa é outra história.), a chefona, dizendo que leu Saramago, o português? Eu acabei pensando isso em voz alta, excluindo os louvores da frase, óbvio. Ela riu da minha admiração e disse que gostava muito de outro autor lusófono, o "Matchado de Assisssss", em especial do livro
Dom Cassmurrrro, que aliás, era o livro mais bem escrito que ela já leu na vida.
Me recuso a descrever minha reação.
Ela elogiou o que merece ser elogiado no livro, e eu retruquei dizendo que tínhamos muito orgulho em debater se Capitu havia ou não traído Bentinho (será que traduziram os nomes?), e que... Enfim, as conversadeiras foram embora e eu arrisquei dizer que, se ela gostou de
Dom Casmurro, que tentasse ler... Ih, como é a tradução em inglês? Memories, memoir of, no, sorry it's... Eu nem consegui lembrar o nome do dono das memórias, vejam só como a criança estava feliz. Mas era um título que tinha qualquer coisa relacionada a lembranças. O narrador já está morto e conta a história com uma ironia deliciosa, enfim, vocês conhecem a história.
Ela agradeceu a indicação muito educadamente e disse ter pena de nunca mais ter encontrado livros to Matchado nem em inglês nem em alemão, eu que mandasse o link para ela se por acaso encontrasse na Internet. Talvez ela tenha ficado feliz em encontrar alguém que gostasse do livro preferido dela, porque quando minha chefe chegou para pegar chá, ouviu-se o seguinte comentário: "A., finalmente encontrei alguém que gosta de literatura de verdade!". Dessa vez descrevo minha reação: modesta, um sorrisinho tímido. Mas só por fora.
Bom, conversar com a dona da empresa não é desculpa para deixar seus e-mails transbordarem pela tela como se não houvesse contas a pagar, né. Então fomos desconversando até chegarmos à minha mesa, nos despedimos e pronto, a história não acaba aqui.
Fim do expediente
Chegou a hora do ritual de partida. Fecha todos os programas, bloqueia o computador, veste blusão, casaco e cachecol, lamenta ter que andar 12 minutos até o ponto de ônibus estando 2 °C lá fora. No meio dessa pequena tristeza, I.W. passa pela minha mesa. Ela dá dois passinhos para trás, como quem lembra de dizer alguma coisa. E diz.
The Posthumous Memoirs of Bras Cubas chega amanhã, em inglês.
Dois dias depois
Hoje ela passou por mim novamente, com seu sorriso pequeno e expressivo, falando rápido como quem só quer deixar um recado: estou gostando muito do livro, tem capítulo pequenos - o que é ótimo para ler no ônibus! O narrador é realmente irônico, e, ah, temos que conversar sobre o livro, pena que agora o tempo é pouco, mas ele é realmente melhor que
Dom Casmurro. Adoro livros cheios de ironia o que escrevi também é assim, você escreveu um livro? sim, mas... está vendo, temos que conversar outra hora, gosto muito quando o narrador conversa com o leitor, vou escrever como quero, se não quiser ler, aguenta só mais um pouquinho, caro leitor. Mas sim, obrigada pela indicação, estou gostando mesmo.
O amigo #2 tem uma história menor, mas já cansei de escrever por hoje.