Por acaso, encontrei outro comentário do IPad, mas desta vez numa análise bem específica: a leitura de Quadrinhos. (Via blog da Cia das Letras). Nos comentários de leitores do blog, há outras observações: o alto preço das versões eletrônicas e a pouca oferta fora do universo Marvel e DC.
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iGibi[/size]
Faz uma semana que tenho um iPad em mãos. Como leitor de gibis na tela do computador há anos, fazia tempo que esperava uma telinha portátil, de tamanho e peso decentes, para poder “folhear” sem maior distração. Não me venha falar de gibi em celular (explico abaixo por quê). O Kindle foi uma esperança, mas limitada aos gibis em preto e branco, fora a resolução fraca.
Eu já estava fazendo gambiarras: girar o laptop 90 graus e segurá-lo no colo como um livro aberto. Assim você consegue ver uma página de gibi no tamanho quase real. Barra de espaço para passar de página, tecla “R” para girar a página, repetir a cada folheada. Depois de quase queimar o computador por bloquear o exaustor com a perna, descobri que podia girá-lo para o outro lado e trocar a “R” pela “L”. Mas enfim: gambiarra.
O iPad é Jack Kirby descendo dos céus para nos dizer “leia muito gibi”. Nessa semana, já percebi algumas coisas:
1) Você se converte muito rápido à ideia de que impresso é passado. E começa a olhar com desconfiança e arrependimento para as estantes. Seu cérebro começa a lhe enganar: você lembra que tem que levar o livro tal para a universidade e o instinto já diz “é só carregar no iPad”. Só depois vem a lógica dizer “dã”. É um choque.
2) Você lê mais. Isso eu já ouvia de quem tem outros leitores digitais. A chegada dum aparelhinho desses parece inaugurar uma nova era de dedicação à leitura do cânone ocidental ? talvez porque agora o cânone ocidental pese menos. Minha pilha (virtual) de leituras (virtuais) está caindo mais rápido. E não parece ser só pela novidade.
3) É mais rápido. Primeiro porque você aperta um botãozinho e ele está pronto, mais rápido que uma TV (não tem tela de “inicializando o sistema operacional”). Segundo porque sua biblioteca está ali à escolha do dedo, como numa jukebox. Terceiro porque cada segundo que você leva para virar a página de um gibi impresso vira meio segundo do indicador clicando pra página seguinte. Para ler mangá, com a narrativa geralmente mais veloz, parece ser o único jeito certo. Imagino milhares de japoneses batendo na testa.
4) A página inteira. E essa é a minha birra com os celulares. 99% das HQs ainda são feitas para o impresso, e isso implica em uma “experiência de impresso”. Will Eisner e Scott McCloud me apoiam em dizer que a página de HQ é pensada pelo desenhista como um todo, e você tem que recebê-la como um todo ao folhear ? mesmo que vá ler um quadro por vez. Fora o 1% de HQs criadas especificamente para serem lidas um quadro por vez (ou em tiras, como os webcomics), ler gibi quadro a quadro é como ouvir só a letra da música, sem a melodia. O entorno é indispensável.
Embora a tela do iPad seja uns 20% menor que o “formato americano”, você ainda consegue ler os balões com clareza. Já o formato europeu, como um álbum do Tintim, é 30% maior que a tela, o que cria um pouco mais de dificuldade. Quando chega a páginas duplas, que os americanos adoram, você tem aquela sensação de estar assistindo mal, na TV, um filme que deveria ter ido ver no cinema. Enfim, enquanto estiver usando o iPad para ler coisas que não foram criadas para o iPad, ele também é meio que uma gambiarra, mesmo que uma boa gambiarra.
5) “O achatamento”. Obviamente, não existe a dimensão da profundidade nem a sensação tátil numa tela. Você não pode ver a última página enquanto marca com o dedo o ponto em que está lendo (para ajudar nesse sentido, há uma barrinha de progresso, como de um vídeo do YouTube). Não há a sinestesia de segurar um livrão de capa dura ou um fanzine sem grampos. Não existem páginas menores ou maiores que as outras, pois todas são do tamanho da tela (falo isso olhando para a cordilheira de quadrinhos de diferentes tamanhos nas minhas estantes).
Enfim, tudo é “achatado” à mesma experiência, e qualquer experimentação com processos gráficos se perde. Pela lógica, toda HQ que não depende de sua materialidade gráfica pode ter sucesso no iPad ? e, convenhamos, são a grande maioria. Pela mesma lógica, edições de colecionador, luxuosos álbuns franceses e o Chris Ware vão manter as gráficas operantes.
É claro que os gibis de papel não vão acabar. Há motivos econômicos, culturais e até ergonômicos para isso não acontecer. Mas com tablets cada vez mais baratos ? olá, China ? por aí, o baque futuro vai ser grande. Mas me pergunte de novo daqui a três meses ? repito que isso tudo são só percepções de uma semana.
O melhor argumento que já ouvi contra os leitores digitais é que, quando todo mundo estiver com o seu no café ou na biblioteca, você não vai poder ver a capa do livro que a ruiva de compenetrados olhos verdes está lendo na mesa ao lado. E aquelas letrinhas na tela podem ser tanto Dan Brown quanto Philip Roth. Já com quadrinhos, o argumento perde a força ? você pode bisbilhotar por cima do ombro dela para tentar reconhecer os desenhos. Nem tudo está perdido.
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Erico Assis lê quadrinhos há 25 anos, escreve sobre quadrinhos há 12 anos e traduz quadrinhos há 3 anos. Do selo Quadrinhos na Cia., ele já traduziu Retalhos, de Craig Thompson, Umbigo sem fundo, de Dash Shaw, e Scott Pilgrim contra o mundo, de Bryan Lee O’Malley.
Em breve terá um garçoniere para guardar a coleção, pois sua esposa não admite mais uma página de gibi em casa. http://www.ericoassis.com.br/
Erico contribui quinzenalmente para o blog com textos sobre histórias em quadrinhos.