A Arya vai enfrentar um dilema: permanecer fiel à ideologia dos Homens Sem Face ou aplicar seus poderes e habilidades em sua vingança. E não, claro que não se trata de entrar na guerra, ela é uma assassina, ela não luta, ela mata. Ela tem o desejo de cortar as gargantas de Cersei e de seus bichinhos de estimação.
O problema é que os Sem Face não são um partido político, uma coisa mundana de que você pode se desligar depois que absorveu o conhecimento. É uma ordem iniciática, mística, onde não só sua entrada e saída está condicionada a ritos muito específicos relacionados à visão de mundo que eles tem, como a própria aquisição e manutenção desses poderes se liga a um segredo fundamental que toda ordem iniciática possui. Esse segredo é o fundamento não só dos poderes empíricos mas da Ideia mesma da sociedade, é um segredo essencialmente secreto, não pode ser transmitido de verdade porque não é um conhecimento racional, é o segredo iniciático que transforma, que dá poderes, que ilumina o nous (a mente), que expande os horizontes, altera a consciência e descondiciona o eu das mundanidades que o cercam.
O dilema é se Arya vai ser fiel ao segredo mas ela não tem muita escolha. A MINHA teoria (inclusive a partir da qual estou escrevendo há anos minha
fanfic) é que essa fase da cegueira vai durar tempo o suficiente para que essas veleidades de vingança dela derretam com a face original dela, até que ela se torne realmente um Sem Face. Em determinado momento, talvez, por algum grande trauma ou invasão do seu passado na sua nova vida ele repense e tente realizar seus planos mas as consequências disso virão. E ela saberá. A minha visão de Arya é a de que o dilema demorará para vir, por enquanto não.
E reflitam sobre o que significa ser um Sem Face. Ter um rosto é ser humano, é ser reconhecível, poder ser identificados pelos outros. Lembrando que nós só nos conhecemos através do outro, é só pelo outro que nos tornamos humanos, e o rosto é o principal media desse reconhecimento, dessa inter-humanização que procedemos desde os mais tenros anos de nossas vidas. Nós vivemos reconhecendo rostos, inaugurando perspectivas e valores novos em nossas vidas a partir desses rostos.
É por isso que o rosto é um aspecto fundamental da teologia dos ícones na Igreja Ortodoxa. São João Damasceno, no século VIII, insiste particularmente no fato de que os ícones de Cristo, da Mãe de Deus e dos Santos, particularmente o de Cristo, de onde irradia a fonte deificante, são verdadeiros rostos. Podem ser pintados (escritos, na verdade, porque seguem modelos fixos de arte sacra), mas o que revela sua 'rostidade' é que fazem mais do que representar homens e mulheres, ele re-presentam, tornam presente, a Pessoa inteira, na sua integralidade. Por isso, ao venerar um ícone, beijar a madeira, na verdade prestamos honra e veneração à Pessoa representada. E não é à toa que Cristo é a primeira Pessoa, Hipóstase, afinal mesmo antes de Sua Encarnação, Ele era o Filho, eternamente sendo gerado pelo Pai, sendo o Outro eterno para o Deus-Mesmo de onde Ele provinha, o Pai, e estabelecendo uma outridade como Aquele que é gerado com Aquele que procede do Pai, o Espírito Santo. Ou seja, a teologia trinitária mesma nos ensina que tanto os modelos logocêntricos ocidentais de se ontologizar o Ser único, fechado, incomunicável, como sua consequência reativa, o da multiplicidade impessoal e desumana de indivíduos livres, mas igualmente fechados em si mesmos, em suas consciências, seus desejos, ambições e sonhos, tudo isso é um fuga da ideia cristã da inter-relacionalidade da Santíssima Trindade, manifestada nas relações entre as pessoas.
Olhando-se por esse lado a seita dos Sem Face é um tipo de desumanização, despersonalização, mas não por nascer de alguma ideia errada. Eles provavelmente sabem que estão desfigurando suas humanidades, mas entendem que é um sacrifício necessário. É como se enfrentassem um inimigo de natureza tão profunda que acreditassem que a humanidade não deveria sequer se defrontar com ele, mas só uma anti-humanidade, sem os escrúpulos, medos, vivências passadas de suas humanidades passadas pudesse se defrontar. Talvez o segredo iniciático dos Sem Face seja exatamente como proceder à unidade de seres sem rosto, desumanos, quebrados na sua humanidade, sem que eles se dispersem no Nada. Imaginem como deve ser árduo esse treinamento: preservar o mínimo de humanidade em um propósito apenas, enquanto todo o resto minimamente humano já se esvaiu.