Terminei a leitura e estou muito fascinado com o livro.
Ah... e maratonei uns vídeos do João Cezar de Castro Rocha, por culpa do
@Mavericco , e fiquei ainda mais fascinado pelo livro.
Acho que o Bento escreve o livro movido por um ímpeto de expiação.
Acho que, em boa medida, o narrador acusa a si mesmo. Definitivamente, Bento Santiago não faz qualquer esforço para se apresentar como um modelo de virtude. Nessa linha, a passagem na qual ele esteve a ponto de envenenar Ezequiel é especialmente impactante.
Ao mesmo tempo, parece haver um ponto de honra para Bento: ele parece mesmo querer estabelecer a culpa de Capitu [e de Escobar]. Termina o romance dizendo que a Capitu adúltera já estava dentro da Capitu de Matacavalos, como se o adultério fosse um desenvolvimento lógico e natural de sua personalidade. Como se trair fosse da natureza dela. Esse "ponto de honra" talvez decorra da necessidade de se convencer de que ele não teve responsabilidade pela infelicidade em que enredou a própria vida.
O último capítulo é como se Bento apresentasse as suas conclusões ao júri.
Mas ele não tem nenhuma evidência de que o adultério ocorreu. O João Cezar faz um comentário bastante espirituoso, dizendo que é como se o Bento apresentasse o Power Point do Dalagnol, com todas as setas apontando para Capitu. Convicção, sem provas materiais...
Inicia por dizer que teve outras mulheres, mas que nunca pôde superar Capitu. Por que motivo? E Bento aventura: talvez porque nenhuma delas tivesse aqueles olhos de ressaca e de cigana oblíqua e dissimulada - o que é um paradoxo, né? Como comenta o professor João Cezar, esses olhos de ressaca e de cigana oblíqua e dissimulada foram justamente o elemento que, aos olhos de Bentinho, condenou Capitu. Ele surtou por conta da maneira como aqueles olhos de ressaca olhavam para o defunto Escobar, no velório.
Em seguida, Bento diz que restava estabelecer se a adúltera já estava contida na Capitu de sua infância; ou se algum fator mudou esta naquela. E ele mesmo diz que fator seria esse - os seus ciúmes. Diz acreditar, no entanto, que os seus ciúmes não contribuíram para o adultério de Capitu e que os leitores concordarão com ele se se lembrarem de Capitu menina.
E termina por dizer que, "qualquer que seja a conclusão", o que fica, "o resto do resto", "a suma das sumas", é que quis o destino que a sua primeira amiga e o seu maior amigo se unissem para enganá-lo.
É curioso. Se ele se vale de uma expressão como "qualquer que seja a conclusão", é como se a questão anterior que ele próprio levanta não tivesse qualquer relevância para o estabelecimento da culpa de Capitu.
De fato, não tem. Mas talvez tivesse relevância para estabelecer a culpa que ele próprio teve no caso. Afinal de contas, a hipótese recusada por Bentinho aqui era a de que a Capitu adúltera não estava contida na Capitu de matacavalos, de modo que teriam sido os seus ciúmes o vetor que teria conduzido ao suposto adultério. No entanto, como a Capitu adúltera é um desdobramento natural da Capitu de Matacavalos, a traição estava destinada a acontecer. E aqui vale mencionar que Bento de fato nomeia o "destino": "quis o destino que a minha primeira amiga... etc etc".
Uma pergunta que eu coloco aos senhores: se Bento assume que a traição foi obra do destino, ele está atenuando a culpa que ele próprio lança sobre as costas de Capitu e de Escobar? Ele próprio, "magnânimo" (as aspas aqui são minhas), emenda: "A terra lhes seja leve! Vamos à História dos Subúrbios."
E aí um ponto que novamente eu pesquei dos vídeos do professor João Cezar... no segundo capítulo, o próprio Bento Santiago, ao falar sobre aquilo que o movia a escrever, disse que teria cogitado escrever uma História dos Subúrbios. Entretanto, descartou a ideia porque isso demandava o recurso a documentos - ou seja, demandava o respeito às
evidências.
Ele acaba decidindo escrever as suas memórias, segundo alega, movido pelo mesmo ímpeto que supostamente o teria levado a reproduzir no Engenho Novo a casa em que se criara, em Matacavalos. Isto é, o que o movia a escrever essas memórias seria a ânsia de querer "restaurar na velhice a adolescência". Entretanto, termina apresentando um libelo acusatório contra Capitu e Escobar, ausente qualquer
evidência de culpa. Como ele disse no capítulo que citei mais acima, há circunstâncias em que a verossimilhança é toda a verdade.
Bento não escreve a História dos Subúrbios porque isso demandava o recurso a evidências, mas terminou escrevendo uma peça acusatória também destituída de qualquer evidência, a não ser as fantasmagorias criadas por ele próprio. E termina o romance dizendo que escreverá a História dos Subúrbios...
Capitu pode ter traído? Pode. Mas a dúvida é insolúvel. E se fôssemos recorrer à linguagem jurídica de que o próprio Bento aqui e acolá se vale*, como diz o brocardo latino:
In dubio pro reo. Na dúvida, favorece-se o réu. Capitu sai desse tribunal absolvida.
Possivelmente misturei alhos com bugalhos nesse post. Mas precisava exorcizar essas questões.
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* chamar aquele capítulo, no qual Bento, saindo da ópera mais cedo, volta pra casa e encontra Escobar à porta, de "embargos de terceiro" é uma ironia genial...