Alguém já leu? Nunca havia ouvido falar. O título da matéria-resenha me chamou a atenção, mas o conteúdo não
Ousada e pouco conhecida obra-prima da literatura brasileira ganha edição de 30 anos
Em carta, Wilson Bueno disse que “Mar paraguayo” poderia levar editor a falência
Por Dirce Waltrick do Amarante — Para o Valor, de Florianópolis
07/05/2023 08h00 Atualizado há 2 dias
A editora Iluminuras recentemente publicou uma edição comemorativa de 30 anos de “Mar paraguayo”, a maior obra do escritor paranaense Wilson Bueno (1949-2010), que ficou muito tempo fora de catálogo.
A nova edição tem organização de Douglas Diegues e Adalberto Müller. Além dos paratextos da primeira edição, de 1992, o livro traz agora novos ensaios críticos sobre a novela que auxiliam o leitor a navegar pelo mar imaginário de Bueno. O destaque vai para uma carta que o autor enviou em 1991 a seu editor, Samuel Léon, junto com o original. Nela, Bueno conta as tentativas frustradas de publicação de “Mar paraguayo” e encerra afirmando: “O livro é difícil, experimental e acho que poderá levá-lo à falência e, portanto, pense muito bem caso o entusiasmo por este mal lhe suba à cabeça”. O ousado editor parece nunca haver se arrependido da publicação, como prova essa edição comemorativa.
O fato é que, como afirmou o poeta Néstor Perlongher, 30 anos atrás, a publicação de “Mar paraguayo” nos coloca “diante de um acontecimento. Os acontecimentos costumam chegar em silêncio, quase imperceptíveis, somente os mais avisados os detectam”. A frase de Perlongher ainda é bastante atual, pois “Mar paraguayo” segue sendo um acontecimento quase imperceptível no Brasil.
A obra-prima de Bueno é um prodígio não apenas no que tange à narrativa e à linguagem, mas também no que diz respeito à circulação do livro na América Latina, pois o texto não precisou de tradução no Chile, Argentina e México, como se lê em nota à nova edição.
Para escrever o livro, Bueno se valeu de três idiomas, o guarani, o português e o espanhol, os quais se misturam, como se sabe, principalmente, na fronteira do Brasil com a Argentina, o Paraguai e a Bolívia. É nessas línguas que se desenvolve o monólogo delirante da protagonista de “Mar paraguayo”, que parece ser sempre estrangeira e estranha em sua “terra natal”, a América Latina.
Além da mescla de idiomas, a forma como a heroína se define, “marafona”, acentua essa falta de identidade definida: “Yo soy la marafona del balneário. A cá, em Guaratuba, vivo de suerte”. A palavra “marafona” possui muitos significados, entre eles: prostituta, cortesã, mulher malvestida e até mesmo uma boneca, de origem portuguesa, cuja armação é uma cruz, coberta de trapos. A boneca não tem olhos, boca, orelhas e nariz.
Talvez a protagonista de Bueno seja uma mescla de todos esses significados. Sem boca, não fala com os outros, só consigo mesma, daí a razão do interminável monólogo em que ela acaba mergulhando sem perspectiva de emergir. Ironicamente, depois de um aviso inicial, o livro começa com Ñe’ê, em guarani, que significa, entre outras coisas, conversar, comunicar-se, falar. Interessante pensar também que as bonecas portuguesas, com poderes especiais ligados à fertilidade, eram colocadas debaixo da cama dos recém-casados e lá podiam ficar porque não podiam contar nada a ninguém.
A marafona de “Mar paraguayo” carrega, como as bonecas lusitanas de quem também é descendente, a sua cruz, e só vê (ou se vê) pelos olhos de um morto: “Hoy me vejo adelante de su olhar de muerto, esto hombre que me hace dançar castanholas en la cama, que me hace sofrir, que me hace, que me há construído de dolor y sangre, la sangre que vertió mi vida amarga”.
A mistura das línguas pode causar um certo desconforto, levando o leitor a não se sentir absolutamente à vontade diante do texto, ainda que ele o entenda. Como diz Perlongher: “Há entre as duas línguas [português e espanhol] um vacilo, uma tensão, uma oscilação permanente: uma é o ‘erro’ da outra, seu devir possível, incerto e improvável”.
A busca da identidade única se mostra impossível num continente como a América Latina, que mescla a cultura dos povos originários com a dos povos da África e dos colonizadores espanhóis e portugueses: “Deseo el fundo de mi naturaliza tombada en nesto sofá, a las três de la tarde de los júnios del balneário. Olvido guaranis y castejanos, marafos afros duros brasileños porque sei que escribo y esto es como grafar impresso todo el contorno de uno cuerpo vivo en el muro de la calle central”.
A protagonista acredita haver esquecido suas origens, mas elas estão presentes e misturadas em toda sua narrativa, seja no uso das línguas, seja nas menções de entidades religiosas: “Añaretâ es el infierno e acabamos sabendo que sus fuegos vigem solamente en el passado ô en el futuro”. Segundo Adalberto Müller, añaretâ é uma “palavra formada por aña (t. anhanga, mal, diabo) + tetâ (povoado, terra, país). Tanto o conceito de diabo quanto o de inferno foram introduzidos no guarani pelos jesuítas, aproveitando-se do léxico e da gramática tupi-guarani”.
Com “Mar paraguayo”, o mar, que nos primórdios ia até o sul de São Paulo, como disse Jorge Kanese a Wilson Bueno, volta a inundar a região.
Dirce Waltrick do Amarante é autora, entre outros, de “Metáforas da tradução” (Iluminuras) e “Cenas de um Brasil regionalista” (2018-2022) (Kotter).
Mar paraguayo Wilson Bueno, Iluminuras, 196 págs., R$ 79,00
Em carta, Wilson Bueno disse que “Mar paraguayo” poderia levar editor a falência
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