Como dar vida a um defunto autor
Três especialistas preparam novas versões de obras de Machado de Assis para o inglês, o dinamarquês e o espanhol
Paula Carvalho
“Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos coisas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado”, ensina Brás Cubas em seu breve prólogo “Ao Leitor”. Tomo, portanto, ao pé da letra, o conselho do defunto autor criado por Machado de Assis para ir direto ao ponto: a tradução de algumas obras do Bruxo do Cosme Velho para outras línguas.
Memórias póstumas de Brás Cubas vai ganhar duas versões: uma em inglês — empreitada realizada pela norte-americana Flora Thomson-DeVeaux, de 27 anos —, que vai sair no ano que vem pela Penguin Classics, e outra em dinamarquês, pelas mãos de Tine Lykke Prado, de 64 anos, nascida em Copenhague, e que será publicada pela editora Multivers.
Saída da tese de doutorado pela Brown University, a tradução de Thomson-DeVeaux é a quarta realizada dessa obra para a língua inglesa, mas é a primeira a ser publicada com notas explicativas, usadas tanto para justificar escolhas de tradução quanto para contextualizar historicamente o leitor anglófono do século 21 sobre o Brasil da segunda metade do 19. Aliás, “século 19” era o que ela esperava encontrar ao ler pela primeira vez esse romance, ao se embrenhar pela área de estudos brasileiros na graduação em Princeton: “Fiquei chocada! Eu não estava esperando achar no século 19 a ironia, a estrutura fragmentada, o jeito como Machado debocha do leitor, mexe com ele, despista. Parecia que estava vendo um mestre operando”.
Ela demorou oito meses para rascunhar uma primeira versão do romance, período em que ficou longe das outras três traduções “para não ficar contaminada”. Diante da precisão da linguagem de Machado, ela criou um método que chamou de “não científico”. Para além de dicionários tanto em inglês quanto em português do século 19, ela utilizou bases de dados de palavras para ver como eram usadas na época. Por exemplo, se alguma frase ou termo não usual chamava a sua atenção, ela entrava na página da Hemeroteca Digital Brasileira da Biblioteca Nacional — onde é possível encontrar inúmeros periódicos digitalizados dos séculos 19 e 20 —, fazia uma busca por palavras e checava o que elas significavam naquele tempo para, assim, verificar se Machado estava parodiando, desconstruindo, criando ou mantendo seu sentido. Depois, recorria ao
Oxford Dictionnary para tentar ver um termo que se aproximasse do utilizado por Machado.
‘As partes mais irônicas são outro desafio. Manter a leveza e as brincadeiras machadianas leva tempo’
Depois, transcreveu as traduções anteriores de
Memórias póstumas de Brás Cubas — a saber, a de William Grossman (
Epitaph for a Small Winner, ou “Epitáfio para um pequeno vencedor”, de 1952), a de E. Percy Ellis (
Posthumous Reminiscences of Braz Cubas, de 1955) e a de Gregory Rabassa (
The Posthumous Memoirs of Brás Cubas, de 1997) — em uma tabela no Word, dividindo os trechos em colunas, com o intuito de comparar cada versão. Assim, conseguia perceber o estilo de cada tradutor e como Machado era visto por cada um deles. A conhecida ambiguidade do escritor também só lhe saltou aos olhos ao cotejar essas traduções.
Foi de uma tradução para o inglês que o editor de Tine Lykke Prado tomou contato com o romance e encomendou uma versão para o dinamarquês. De ascendência brasileira, Prado conta que teve Machado “pelas veias”, conhecendo-o através da sua família brasileira, além de ter frequentado cursos sobre sua obra tanto na Universidade de Brasília (UnB) quanto na Universidade de São Paulo (USP).
Arqueologia
Ela compara a tradução de
Memórias póstumas de Brás Cubas a um “trabalho arqueológico”, pois diante da profusão de citações indiretas existentes no romance, ela — que já traduziu Clarice Lispector e Graciliano Ramos para o dinamarquês — tinha de pesquisar para descobrir e encontrar as fontes originais, além de conversar com historiadores e outros especialistas.
“As partes mais irônicas representam outro desafio, bem gostoso. Manter a leveza e as brincadeiras da linguagem machadiana leva tempo, pois para mim é essencial que o estilo elegante de Machado seja recriado na tradução, sem sombras”, conta ela, justificando a existência de notas no livro. “Como tradutora, dou valor ao estilo dos escritores, por isso me esforço muito para conseguir recriar o dele. Machado é um autor dos anos 1800 que ao mesmo tempo é moderno. Há ingredientes que são antigos, só que a linguagem dele não é. O balanço é achar uma linguagem recriada que não seja leve demais, e que seja divertida, mas que não seja tão boba. Esse é o maior desafio, e é isso de que eu mais gosto.”
Já a mexicana Paula Abramo, 39 anos, tem a missão de traduzir para o espanhol “todos” os contos de Machado, que vão de 1858 a 1906 – até o momento ela traduziu até 1882. “A palavra ‘todos’ é problemática, porque existem diversas propostas de
corpus. Neste momento, estou traduzindo aqueles contos em que a autoria machadiana é segura, e vou deixar para a última fase do projeto as decisões sobre a inclusão ou a exclusão de contos de autoria duvidosa e textos genericamente ambíguos, que alguns estudiosos consideram conto e outros crônica”, explica ela, que ainda não tem editora.
‘Tem que tomar cuidado com as palavras, pois aqui é malvisto dizer ‘escravo’, que aparece muitas vezes’
A tradução para o espanhol desses contos se resume aos textos que aparecem nas sete antologias de sua obra que o próprio Machado editou: “Existe uma ideia, bem estendida, de que, se Machado escolheu esses contos, foi porque eram os melhores. Mas acho que, nesta altura do século 21, é válido questionar as escolhas do gênio e visitar o enorme continente que ficou fora dessas antologias, que também estou traduzindo”. Na sua visão, nada é descartável, e existem “joias absolutamente deliciosas”, como contos que beiram a literatura fantástica ou de terror, como “O anjo Rafael”, “O capitão Mendonça” e “O Esqueleto”; além de aparentes paródias como “Rui de Leão” e contos mais “duros”, como “Mariana”, de 1871, em que “a crítica às crueldades da escravidão e à opressão da mulher é escancarada”.
Sua rotina de trabalho consiste em fazer um rascunho do conto, em que “resolve os problemas mais fáceis”, deixando para depois as soluções mais difíceis. Em seguida, revisa e faz o “trabalho propriamente literário e de pesquisa mais profunda”, sendo a parte mais demorada. Ela não costuma consultar outras traduções nessa fase do processo. Só no final revisita ocasionalmente o trabalho de alguns colegas, para ver quais foram as soluções achadas por eles nas passagens mais difíceis. Durante a fase de revisão, ela procura ler literatura hispano-americana do período em questão para se familiarizar com o vocabulário e as expressões utilizadas no castelhano do século 19. Assim como Thomson-DeVeaux, ela também se vale da Hemeroteca Digital para ver as edições dos jornais onde os contos de Machado foram publicados, além das versões originais e as mais recentes das sete antologias.
Nhonhô
O trabalho de tradução não se resume apenas a traduzir palavras ao pé da letra. Faz parte do ofício também mergulhar no mundo do autor, se familiarizar com a época em que viveu. (Nesse ponto, a analogia entre a tradução e a arqueologia apontada por Prado acerta em cheio.) E, talvez, a palavra que melhor resuma o contexto vivido por Machado seja “nhonhô”.
Tanto Thomson-DeVeaux quanto Prado e Abramo apontam que essa foi uma das palavras mais difíceis para se encontrar um equivalente na sua língua. “Nhonhô” é outra forma de falar “nhô”, “sinhô” ou “ioiô” — a versão feminina é “nhá”, “sinhá” ou “iaiá” —, sendo um dos modos de o escravizado tratar os jovens senhores da casa-grande. É o Brasil — e mais especificamente o Rio de Janeiro — escravocrata. Esse é o contexto de Machado de Assis. Um mundo difícil de ser traduzido, principalmente para culturas que não conviveram com a escravidão moderna ou que não demoraram a aboli-la.
Prado conta que “‘nhonhô’ não tem equivalente nas línguas germânicas e anglo-saxônicas: “Não tivemos escravidão na Escandinávia — só em algumas ilhas —, mas parte desse mundo não existe, tem que recriar. Tem que tomar muito cuidado com as palavras, pois aqui não se pode dizer ‘negro’, e a palavra aparece cinco vezes por página. Aqui, é malvisto dizer ‘escravo’, que também aparece muitas vezes. Tem que dizer ‘escravizado’. Não dá para usar ‘escravizado’ no lugar de ‘escravo’. Escolhi ‘escravo’. Estou esperando ser castigada quando sair a edição. A editora também está preparada para ter uma reação dos
mais politicamente corretos”.
Abramo também vê dificuldade em traduzir o vocabulário associado à escravidão, que foi abolida no México em 1829 — muito antes do Brasil, que só fez isso em 1888 —, “de maneira que palavras como ‘
muleque’ se tornam problemáticas, por remeterem a contextos mais antigos”. Thomson-Deveaux, mesmo vinda dos Estados Unidos, país que ainda convive com as chagas históricas do sistema escravista como o Brasil, resolveu criar uma nota definindo “nhonhô” como “
little master”, ao mesmo tempo em que deixou o termo como uma espécie de nome próprio: “Não tem como ter um personagem chamado ‘
lil’ master’”.
Fonte.
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Nesta semana, a única coisa que tem me dado alegria é acompanhar as notícias sobre traduções do MACHADÃO DO MEU CORAÇÃO para outras línguas. Achei esse trem aqui bastante interessante, gente.